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Inspiração de incontáveis histórias fantásticas e da Terra Média de O Senhor dos Anéis, Beowulf, um dos mais importantes textos da literatura anglo-saxónica antiga, é editado pela primeira vez em Portugal.

Por Pedro Henrique Miranda

A história de Beowulf, épico que inspirou Tolkien e O Senhor dos Anéis

NO QUE a textos antigos diz respeito, até é, bem vistas as coisas, bastante recente: só chegaria séculos depois dos clássicos gregos e dos seus seguidores romanos, da ancestral sabedoria chinesa e indiana, e das escrituras basilares das grandes religiões mundiais. Ainda assim, quanto à civilização a que diz respeito (e sobre a qual transmitiu valiosa informação), os guerreiros e navegadores escandinavos a que hoje chamamos vikings, é um documento essencial: o mais conhecido dos textos preservados em inglês antigo e uma obra fundacional do cânone literário anglo-saxónico.

Que a sua importância não desmotive, no entanto, o leitor curioso. Beowulf, épico de autor desconhecido escrito algures entre os séculos VIII e XI, é, enquanto poema, relativamente extenso, consistindo em 3.182 linhas de um verso aliterativo algo intrincado. Como narrativa heroica, por outro lado, é bastante curto, e surpreendentemente de acessível compreensão na edição que agora nos chega, pela primeira vez em português, pela Assírio e Alvim.

Para tal, contribui o trabalho desenvolvido por Luísa Azuaga e Angélica Varandas, que, além de assinarem a tradução, incluem nesta edição de capa dura uma introdução do enquadramento histórico e cultural do texto, árvores genealógicas dos clãs mencionados, um mapa, um glossário, imagens a cores e extensas notas que auxiliam a compreensão da narrativa do herói mitológico.

Poema épico em inglês antigo, Beowulf, de autor desconhecido, narra as aventuras do herói escandinavo com o mesmo nome, que defronta três monstros fantásticos

Embora tenha sido escrito em Inglaterra e em inglês, nenhuma da ação de Beowulf lá decorre. Originalmente sem título, o poema de três partes recebeu o nome do seu protagonista, um guerreiro “com a força de 30 homens” do clã escandinavo dos Geats (oriundo da atual Suécia) que parte em socorro de Hrothgar, rei dos Dinamarqueses, quando o seu clã é aterrorizado pelo monstro Grendel.

Na primeira parte, Beowulf defronta Grendel, uma criatura devoradora de homens que vive no pântano e todas as noites emerge para atacar a cidade de Heorot; na segunda, confronta a mãe de Grendel, uma “bruxa do mar” que surge em busca de vingança pela morte do filho; na terceira, decorrida 50 anos depois, luta contra um dragão que cospe fogo – o mais antigo que se

Beowulf foi inspiração de inúmeras histórias de fantasia, incluindo O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, que traduziu o texto e deu várias palestras sobre a sua narrativa

conhece em toda a história da literatura – despertado pelo roubo de uma peça do tesouro que protege.

Apesar da predominância dos elementos fantásticos, é no relato histórico que reside outro dos valores de Beowulf: desde que foi redescoberto e editado, no século XVIII, o poema tem sido usado como fonte histórica de costumes, rituais e hierarquias dos povos anglo-saxónicos e escandinavos, e escavações arqueológicas como a de Sutton Hoo vieram a confirmar muitos dos detalhes da narrativa de Beowulf, incluindo peças de armamento e ritos funerários – lê-lo é, também, embarcar numa viagem surpreendentemente imersiva de volta a esse tempo.

Mas se a história de monstros fantásticos, dragões, tesouros e guerreiros de força sobre-humana tende a ser familiar, é porque muita da ficção de fantasia subsequente é sua herdeira direta. Exemplo maior disso é o trabalho de J. R. R. Tolkien, que traduziu em prosa o poema épico, deu palestras sobre ele e adaptou boa parte dos seus nomes, monstros, tramas e estilo para a sua Terra Média – em particular, no romance O Hobbit, e na adaptação para o cinema de Peter Jackson A Desolação de Smaug, cujo dragão é virtualmente copiado do de Beowulf.

É a Tolkien, ainda, que podemos atribuir uma nova apreciação do valor artístico de um poema até aí estudado sobretudo pelo prisma histórico e arqueológico – a ele devemos a leitura de temas como a violência, a traição, a incontornável efemeridade da vida ou a luta de cada um de nós contra os monstros alegóricos que nos assombram. ●

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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