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Cinema

Vencedor de um Óscar, A Voz das Mulheres já pode ser visto nos cinemas. Realizado por Sarah Polley, tem um elenco de luxo (Frances McDormand, Claire Foy e Rooney Mara) e foge ao maniqueísmo panfletário.

Por Nuno Miguel Guedes

O feminismo de A Voz das Mulheres, vencedor de um Óscar

ENTRE 2005 E 2009, mais de cem mulheres e raparigas foram violadas à noite e nas suas casas por um grupo de homens da colónia Menonita de Manitoba, na Bolívia. Os Menonitas são um culto religioso fundado no século XVI , na sequência da oposição à igreja católica que viria dar origem à Reforma. Os seus valores são cristãos e o pacifismo o mais proclamado e vivido.

O método da violação foi idêntico: as mulheres e crianças eram sedadas com um tranquilizante para gado. A vítima mais velha tinha 65 anos; a mais nova, três. Estes atos foram considerados “fantasias femininas”, “aparições de fantasmas” ou “visitas de Satanás” pelo Conselho de Anciãos da colónia – formado exclusivamente por homens. Quando um dos violadores foi apanhado em flagrante, o Conselho decidiu entregar o caso à polícia e as detenções feitas serviram mais para proteger os homens da fúria das mulheres do que para os entregar à justiça.

A escritora Miriam Toews baseou-se nestes acontecimentos para o seu romance Women Talking, que deu origem ao filme A Voz das Mulheres, realizado por Sarah Polley. Como somos alertados no início, o que iremos ver é um produto da imaginação de

O filme é baseado no romance Women Talking, que ficciona uma resposta a mais de 100 violações que aconteceram mesmo na Bolívia, entre 2005 e 2009

uma mulher – ou seja, uma situação imaginada: aquela em que as mulheres são deixadas sozinhas a decidir o seu destino, que se resume a três alternativas, ficar e lutar, perdoar ou fugir. Sem escolaridade – a escola é reservada aos homens – as mulheres votam de cruz com base em desenhos que representam cada uma das situações. Há um empate entre ficar e lutar contra os homens ou abandonar a colónia.

É neste processo de escolha que o filme se estrutura. Com um elenco quase exclusivamente feminino – que inclui Frances McDormand, Claire Foy, Rooney Mara ou Jessie Buckley, todas actrizes de excelência – a realizadora e também argumentista opta por dizer mais do que mostrar. É o texto e os diálogos que comandam a ação e nos dão a personalidade daquelas mulheres traumatizadas. As mais velhas, resignadas; outras mais combativas; e ainda aquelas que tentam ser mais ponderadas perante o que vão enfrentar. Sem surpresas, o filme é naturalmente ligado a

fenómenos que são filhos destes dias, como o movimento #MeToo. Talvez por isso, em certos diálogos, temos a sensação de assistirmos a uma reunião de estudantes universitários que debatem o papel das mulheres na sociedade.

Mas embora com uma mensagem para entregar ao espectador, A Voz Das Mulheres escapa com elegância e inteligência ao mero veículo panfletário. Aqui e ali há uma sensação de maniqueísmo fácil, é

Frances McDormand (que integra o elenco) é também produtora do filme, que tem ainda Brad Pitt como produtor executivo

verdade: os homens são inevitavelmente todos opressores cruéis, com a exceção da personagem de Ben Whishaw, um tímido professor primário que foi expulso da colónia por causa da sua mãe não respeitar as leis e hierarquias que lhe impunham, e que é solidário com a luta das mulheres.

A Voz Das Mulheres, não vale a pena negá-lo, é um filme muito ao gosto do ativismo liberal de Hollywood e que a Academia tem apoiado. Não por acaso, tem McDormand como produtora e Brad Pitt como produtor executivo. Mas consegue envolver-nos na causa daquelas mulheres e transportar-nos, a partir de uma colónia que vive em anacronismo e distante do mundo exterior, para os dias e as lutas de hoje numa forma que não é simplista. Há vários conflitos para resolver, nomeadamente entre a ação e a religião que atravessa todas as personagens. Pacifistas por formação, têm dificuldade em enfrentar a realidade que pode pedir um combate para impor justiça. A dada altura, serve-se até a utopia: uma das personagens sonha com um mundo baseado na “velha religião mas com mais amor”, onde as mulheres sejam livres para pensar e ser educadas. A resposta consonante: ”És uma sonhadora.” Talvez seja o que

A Voz das Mulheres pede: que se desperte dos sonhos, esses gritos mudos. ●

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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