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CASAS À VENDA COM INQUILINOS

*COM UM INQUILINO LÁ DENTRO

Por Raquel Lito

Compram-se a preço de saldo, mas na condição de os novos donos só irem para lá no fim do contrato de arrendamento

Chegam a pagar metade pela casa e não se importam de esperar que fique desocupada. Vanessa Ferreira está radiante com a compra que fez por €170.000 no centro de Lisboa. Esta é uma forma para dar a volta à crise.

Uma inquilina com mais de 70 anos resiste à especulação imobiliária. Vive sozinha, numa casa rara para os tempos que correm: um rés do chão de 70 m2, bem conservado, com pátio privativo de 40 m2, perto da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Mantêm-se os tetos trabalhados, o chão de tábuas corridas e as portadas nas janelas (ou não fosse o edifício de finais do século XIX, entretanto reabilitado). A renda? Menos de €200 por mês. Quando o dono do prédio decidiu vendê-lo, há cerca de meio ano, a inquilina temeu pelo futuro. “A senhora estava com receio de ir para a rua, mas assegurámos que ficaria na casa”, diz à SÁBADO a vendedora Cláudia Marquês, da imobiliária Prosperity Discovery.

Numa sexta-feira, 20 de janeiro de 2023, a mesma senhora, já tranquila, acabaria por abrir a porta a estranhos e por lhes servir bolinhos – no contexto de uma open house (casa aberta) para oito potenciais compradores, previamente selecionados pela imobiliária, de um total de 50 candidatos. Condição: terem capitais próprios e pagarem a pronto. O fator humano também contava: teriam de ser sensíveis à vulnerabilidade da inquilina e não tentarem despejá-la.

À visita compareceu uma amiga de Vanessa Ferreira, a viver em Lucerna (Suíça) há seis anos e muito interessada na compra para ter uma casa em Portugal e colocá-la no mercado de arrendamento. O preço anunciado para venda era de 160 mil euros, metade do pedido para imóveis com as mesmas características mas vagos. “Havia vários interessados, o preço subiu para 170 mil euros e comprei a pronto. Mesmo com contrato de arrendamento vitalício a casa é brutal. Não vou aumentar a renda um cêntimo”, assegura Vanessa Ferreira.

Assinou o Contrato de Promessa Compra e Venda (CPCV) à distância, a 23 de janeiro, e sinalizou com 20% do preço (€34.000, por transferência bancária). A escritura celebrou-se presencialmente, a 28 de fevereiro, em Lisboa.

Uma história que se repete porque, 23 anos antes, quando o anterior proprietário comprou o prédio, já a inquilina lá vivia há três décadas. “As outras frações estavam vagas e fiz delas a minha casa”, recorda o próprio, que pede o anonimato. E acrescenta: “Dei-lhe direito de preferência [para a compra do imóvel], cumprindo a lei. A inquilina não o exerceu. Moralmente, não ficava bem se a deixasse numa situação que não fosse segura [vendendo a alguém ganancioso].” No fim, ficou satisfeito. Vendeu as três frações na mesma altura e a preços distintos: as duas desocupadas por cerca de €350.000 cada.

À falta de casas no mercado, e com a contínua escalada de preços surgem, cada vez mais, estas opções de compra com inquilino lá dentro. Vários vendedores confirmam a tendência à SÁBADO, e o Idealista envia, a nosso pedido, uma listagem de imóveis nestas condições: sete na Grande Lisboa, até 220 mil euros, e sete no Grande Porto, até 190 mil.

Mas encontrar um comprador que não pressione os inquilinos vulneráveis com contratos antigos (anteriores a 1990) a desocuparem a casa nem sempre é fácil. A especialista em assuntos jurídicos da DECO Proteste avisa a SÁBADO para as más práticas (ver caixa): “Tal conduta é designada por assédio no arrendamento e é proibida por lei. São comportamentos que prejudicam gravemente o

“NÃO VOU AUMENTAR A RENDA UM CÊNTIMO”, GARANTE A NOVA PROPRIETÁRIA VANESSA FERREIRA

acesso e a fruição do imóvel.”

Nestas circunstâncias, diz, o arrendatário pode “requerer à autarquia competente uma vistoria ao imóvel, para constatar as situações que podem prejudicar a utilização da habitação”. Até porque “a lei determina a transmissão do arrendamento [nos contratos antigos sem termo] para o novo proprietário”.

Pechincha em zona atrativa

A artéria de luxo lisboeta, a Avenida da Liberdade, fica ao virar da esquina; a estação de metro a meio quilómetro; e não faltam paragens de autocarro. Neste T1 de 29 m2, o chamariz é o preço: está à venda por 179 mil euros. Teve obras recentes, em 2017, e conta com vidros duplos, cozinha e WC novos, com a vantagem acrescida de o prédio de 1937 também ter sido reabilitado no ano das obras. Segundo um dos vendedores que o comercializa, Bruno Mello, da Remax, um T1 semelhante na zona oscila entre os €195.000 e os €220.000.

O desconto deve-se ao facto de o imóvel estar arrendado até 2025 a um estrangeiro. “O inquilino não tem intenção de renovar o contrato, nem de exercer o direito de preferência”, ressalva o agente imobiliário. Mas nem por isso é incomodado com visitas constantes de eventuais compradores. “Deve ser tratado com total respeito e cuidado”, prossegue o mesmo responsável. A promoção começou a 11 de janeiro e foi clara – alertou para o contrato de arrendamento que restringe o uso. O preço também foi definido em conformidade: “Não há margem para especulação, devemos ter o inquilino como aliado neste processo”, diz.

A fim de “preservar” o inquilino, Bruno Mello fez uma triagem prévia. Excluiu 2/3 dos interessados de “menor potencial”: isto é, quem estava pouco tempo no nosso país, sem advogado que o representasse; ou na

dúvida de conseguir crédito aprovado; ou ainda a ver múltiplas opções, sem manifestar real interesse no imóvel. Em suma, os turistas imobiliários ficaram à porta. À final chegaram seis investidores, todos de nacionalidades diferentes – brasileiro, chinês, português, belga, argentino e francês. “As visitas foram agendadas com 72 horas de antecedência, pelo menos, e num curto intervalo horário, para causar menos transtornos.”

Nestas ocasiões, o inquilino saía de casa mas mantinha-se por perto. O vendedor recebeu quatro propostas (a valores mais baixos do que o preço anunciado) e a melhor (não revela qual) será escolhida em breve.

Descontos na Margem Sul

Na Margem Sul do Tejo a tendência faz-se notar há quatro meses, de acordo com o agente Francisco Fachetti, da Century 21. “Os proprietários perdem algum dinheiro, porque têm de vender abaixo do valor de mercado, mas investem melhor”, diz. Há T2 e T3 em Almada e no Seixal (com inquilinos e a precisarem de obras totais) a venderem-se entre os 80 mil e os 150 mil euros. “O desconto tem de ser na faixa dos 30% a 40%.”

Mas o fecho do negócio dá-se agora na Linha de Sintra. Francisco Fachetti propôs ao proprietário um desconto para um cliente brasileiro, um advogado a residir no estado de Espírito Santo. O T1 de 45 m2 da década de 70, em Queluz, foi anunciado a 110 mil euros e o dono aceitou

NA MARGEM SUL DO TEJO A TENDÊNCIA FAZ-SE NOTAR HÁ QUATRO MESES, SEGUNDO FRANCISCO FACHETTI

baixar o preço para os €97.500. A inquilina terá de ficar na casa, arrendada há um ano em regime de contrato anual (€500 por mês). “Vamos seguir o contrato, só vai mudar o proprietário.” O CPCV aconteceu no fim do ano passado e a escritura está por dias, com 65% do valor (€63.375) financiado pelo banco.

Em construções mais recentes, com contratos de arrendamento de um a três anos, há alguns (poucos ainda) imóveis à venda. São procurados “por investidores portugueses e estrangeiros”, segundo Rita Bueri, responsável de vendas no segmento residencial da imobiliária JLL.

No Porto, Filipe Pereira Duarte (advogado especializado em Direito Imobiliário) vê o mercado a mexer: “Tem estado muito ativo.” Sendo transações mais complexas, por vezes requerem apoio jurídico. “Se o imóvel estiver arrendado há dois anos ou mais, o inquilino tem direito de preferência.”

Quem compra quer saber ao que vai. “É normal os investidores pedirem para analisarmos o imóvel”, diz o advogado. Isto em termos de papelada implica dois a três dias de trabalho: verificar os registos na conservatória do registo predial, se os proprietários são quem dizem ser, se há penhoras ou hipotecas e se há discrepância entre a informação que consta da certidão do registo predial e da caderneta predial urbana (em termos de áreas).

Sobre o contrato de arrendamento, Filipe Pereira Duarte confirma se este cumpre os requisitos legais: “Quando se renova ou se extingue e as eventuais condições acordadas para aumento de renda.” O mais normal é que a subida seja feita em função dos dados anuais do Instituto Nacional de Estatística (INE), diz, tendo em conta o coeficiente de atualização das rendas pela inflação (atualmente de 2% por limitação do Governo).

Em teoria, pouco ou nada muda para o inquilino. “O que na prática sucede é que o arrendatário recebe uma carta do novo proprietário comunicando os novos contactos e o novo IBAN para pagamento das rendas”, frisa o perito.

Tipicamente, na Invicta os prédios à venda com inquilinos são velhos, em zonas históricas (Campanhã, Avenida dos Aliados, Bonfim) e comprados para reabilitação – venderam-se mais entre 2016 e 2020, de acordo com a experiência de Jorge Costa (diretor comercial da imobiliária Quintela e Penalva). O que implica redobrados cuidados aos novos donos: “Podem transferir o inquilino para outro imóvel ou pagar-lhe uma indemnização, a lei diz que a pessoa tem de ser relocalizada na mesma freguesia e com casa nas mesmas condições.” Ou podem não chegar a acordo e seguir para tribunal, arrastando-se o caso por anos. ●

Sumário

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