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“Não há transição energética sem envolver todos e sem empoderamento do consumidor”

António Cardoso Marques, Professor Catedrático de Economia da Universidade da Beira Interior, indica como prioridade a promoção da literacia energética e explica as vantagens das comunidades de energia renovável.

“Quando sentimos que pertencemos a um projeto, qualquer que ele seja, desde um grupo de amigos, uma equipa de trabalho, ou até uma confraria, temos o privilégio e o poder de ser ouvidos, de ser respeitados, compreendidos e valorizados; então nesse contexto, esse grupo, essa equipa, esses processos têm tudo para ser bem-sucedidos. Mesmo que exijam muito de nós.

E na transição energética, desígnio e projeto inigualável da nossa vida coletiva, o cidadão comum também se sente ouvido? As nossas opiniões contam? O consumidor compreende e tem ferramentas ao seu dispor para poder contribuir para o objetivo comum? Ou, pelo contrário, o consumidor não entende o porquê ou qual a razoabilidade das decisões? Sente-se alvo e não a seta, não encontra recetividade, mas sim immento posições. Haverá transição energética sem envolver todos?

O sentimento de pertença do consumidor ao processo de transição energética tem sido globalmente descurado, em favor de eloquentes anúncios, de emocionantes discursos, de medidas globais e mediáticas ou de ações de rua mais ou menos dramáticas, de cidadãos mais ou menos jovens, que anunciam o caos. Quando, na verdade, não estão conscientes que o caos estará semeado naqueles que não conseguem mudar ou adaptar-se. O caos está nos que estão confinados, em recursos e em conhecimento, ao que sempre foi, à forma como sempre fizeram e ao modo como sempre viveram. No entanto, deve-se salientar que esta transição, e não a transição energética, leva a conhecer cada vez mais a carência, a marginalização social e a pobreza energética.

No tempo atual falar em energia não é equivalente a referir-se apenas à escolha, simples ou não, de fontes de energia a usar. É muito mais do que isso. As opções em energia têm, cada vez mais, implicações não apenas para o ambiente ou para o orçamento individual, mas também para a vivência em sociedade. A energia converteu-se num veículo de inovação, de introdução de novos produtos que estão ao alcance de alguns, mas seguramente não de todos. É pois imperioso que se aprofunde o debate, e a ação, sobre o empoderado consumidor neste processo de transição energética.

A promoção da literacia energética é uma absoluta prioridade neste caminho a percorrer para o empoderamento do consumidor. A Universidade da Beira Interior abriu recentemente as candidaturas para o primeiro curso não conferente de grau, ao abrigo do PRR, de ‘Escolhas Informadas em Energia’. Também o reforço da transmissão de conhecimento nas escolas é crucial, para despertar a curiosidade das crianças para este assunto. Elas podem agir como verdadeiros agentes da mudança, transmissores de conhecimento e de modernidade, nos seus agregados familiares. Também o desenvolvimento efetivo e substancial das comunidades de energia, constitui-se como uma ferramenta central neste processo. A capacidade de gerar uma parte da eletricidade que consome será a componente mais pragmática e que fará o consumidor sentir-se envolvido e ouvido. Até pode não ter condições financeiras ou edificado com condições físicas para ser produtor, mas pode beneficiar da partilha da geração descentralizada e local, adquirindo eletricidade a um preço mais baixo. Isso muda tudo. Deixa de ser ‘apenas’ um contribuinte para o futuro das gerações vindouras, e passa a ser também um beneficiário no presente, de uma medida de empoderamento do consumidor.

“Para além do reforço da literacia, deve-se promover medidas concretas, in loco, tais como a criação de gabinete locais ou municipais de apoio à eficiência energética que procurem elevar o poder do consumidor e a sua capacidade de decisão.

As comunidades de energia renovável são, de facto, um precioso instrumento para não deixar ninguém para trás. Elas constituem-se como uma forma de aprofundamento e de envolvência na comunidade que os consumidores integram. Elas puxam não apenas pela responsabilidade coletiva, mas também pessoal, nos seus comportamentos de consumo de eletricidade. Estas comunidades estimulam o contacto com uma nova forma de organização do consumo de eletricidade, onde novas oportunidades e vontades de mudança de comportamento surgirão. Desde logo a vontade (e atratividade económica) de substituição de equipamentos de climatização dos edifícios. E a seguir nas formas de mobilidade, podendo constituir um forte impulso à mobilidade elétrica.

É aqui que encontramos uma outra dimensão de extrema importância nesta transição, que são as redes inteligentes, no seu sentido lato. O termo é pesado e vale a pena desconstruí-lo. De uma forma resumida, pretende-se com essa inteligência garantir flexibilidade no sistema elétrico, sem comprometer a sua resiliência, isto é, sem colocar em causa a continuidade do fornecimento. Ora, a flexibilidade pode, e deve, ser conseguida do lado da oferta, como tem sido tradicionalmente dominante. No entanto, também pode, e seguramente também deve, ser conseguida do lado da procura. Para isso o consumidor tem de estar informado.

A substituição de contadores por parte da E-REDES, em curso, é um passo fundamental nessa transmissão de informação para o operador de rede, mas também deste para o consumidor. Entendo, no entanto, que o processo não acaba aqui. É necessário aprofundar esse acesso à informação e que acrescente poder à forma passiva atual. Isto é, o consumidor deve estar cada vez mais dotado de ferramentas de controlo remoto dos consumos instantâneos e de ação em tempo real sobre esses consumos, tendo como referência a noção de carga líquida e não de carga absoluta do sistema. Por outras palavras, a noção tradicional de pico de consumo e de tarifas ‘time-of-use’ deverá evoluir, no sentido de ser considerada como referência a carga efetiva, líquida de renováveis, que em cada momento do dia se verifica. Assim, os consumidores devem ser também empoderados com esses dispositivos e tecnologias que lhes permitam monitorizar os consumos, e neles atuar em tempo real para conseguirem a tal flexibilidade. Esta, deve ser premiada, nomeadamente em sede de preços de energia

“A substituição de contadores por parte da E-REDES, em curso, é um passo fundamental nessa transmissão de informação para o operador de rede, mas também deste para o consumidor. Entendo, no entanto, que o processo não acaba aqui. É necessário aprofundar esse acesso à informação e que acrescente poder à forma passiva atual.

consumida da rede. Esses dispositivos devem, na verdade, passar a ser encarados como um equipamento essencial num edifício, sejam eles novos ou remodelados. E porque não créditos fiscais para esses equipamentos que permitem reduzir picos de consumo? Claro está, quanto menos pronunciados forem os picos, menor a necessidade de recurso a fontes controláveis de energia, nomeadamente o gás, contribuindo assim para a descarbonização e para a transição. Mas sempre com o consumidor no centro da equação. Cada consumidor que fica para trás é um travão a essa transição.

É evidente que todo este processo é moroso. E nem todos partem do mesmo patamar. Aos decisores de política exige-se cada vez mais o foco no consumidor, e menos na criação de um emaranhado de notícias, de regras, de restrições ambientais impostas ou transpostas, com poucos ou nenhuns incentivos ao bom comportamento realista. Nota-se uma clara imposição de penalizações pelos comportamentos que foram sempre os do consumidor, que não conhece outros e, pior, que não tem capacidade para os alterar. Para além do reforço da literacia, deve-se promover medidas concretas, in loco, tais como a criação de gabinete locais ou municipais de apoio à eficiência energética que procurem elevar o poder do consumidor e a sua capacidade de decisão. Poder de decidir, de participar no processo de transição energética, com custos suportáveis, porque só com todos a bordo lá conseguiremos chegar.

Este é o tempo de avaliar o que já está feito, de refletir e de agir sobre o que pode vir a fazer-se. A E-REDES, no âmbito do seu ciclo de conferências E-REDES Academia, associa-se à Universidade da Beira Interior na promoção da IV conferência dedicada às Redes Inteligentes e Transferência de Poder para o Consumidor, no dia 21 de Março, na Universidade da Beira Interior. Fica aqui o convite.

António Cardoso Marques

Prof. Catedrático de Economia, Universidade da Beira Interior

Opinião

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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