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regresso do “inimigo ideal”

Otema é simultaneamente velho e atualíssimo. No Direito, nas Relações Internacionais, nos estudos sobre resolução de conflitos e na polemologia, importa voltar à noção de “inimigo”.

Não por qualquer tentação metafísica, ou de regresso aos conclaves de discussão sobre o sexo dos anjos, mas por necessidade prática de qualificar o tempo atual.

De o qualificar, compreender, gerir e planear o que aí vem, como sucessor, derivado e consequência.

Margarita Simonyan (na foto) é, para muitos, um epifenómeno e um acessório No fundo, paisagem e não agente. Criatura e não criadora. Mas a verdade é que está há 18 anos à frente do Russia Today, o veículo comunicacional que o estado russo um dia sonhou como a “CNN eslava” (cito a expressão de um ex-fundador), “influente, cosmopolita e missionada” (idem).

Para Simonyan – pelo menos esta semana –, a Rússia derrotou a Ucrânia em três dias (volto a citar diretamente), a seguir à “operação militar especial” de 24 de fevereiro de 2022, e a seguir viu-se confrontada com uma uma guerra contra todo o Ocidente, a NATO, a UE e vários países subsidiários. Imagino que se referisse ao Japão, Coreia do Sul e aos árabes e africanos que integram o Grupo de Ramstein, fornecedor de apoio militar a Kiev.

Simonyan diz que esta guerra é especialmente difícil para Moscovo, porque, ao contrário do conflito 1939-1945, “a Rússia não possui nem aliados, nem amigos, nem interventores e fornecedores, capazes de abrir uma segunda frente”.

Num rebate de consciência, mas tendo o cuidado especial de nunca

tocar o pacto entre nazis e estalinistas (ela, uma arménia descendente de família purgada pelo “Homem de Aço”), Simonyan diz que, na anterior guerra mundial, a Rússia Soviética (ou a URSS, cujos limites se parecem confundir na própria mente russa) foi ajudada pelos EUA (incluindo através do primeiro sistema lend and lease, que agora beneficia a Ucrânia), pelo Reino Unido, e, “em menor parte” (?), pela França, numa luta titânica contra “grandes potências” como a Itália, a Alemanha e o Japão.

No presente, as nações “observadoEmbora ras e simpáticas”, da China à Venezuela, do Zimbabwe a Cuba não querem, podem ou sabem intervir, a ajudar o antigo “Sol do Mundo” (a expressão que muitos comunistas oficiais de todo o mundo usavam, para designar a URSS). Mas Simonyan diz que esta guerra terminará com o novo despontar desse astro.

Por outras palavras, nesta “guerra santa”, Moscovo tem a “proteção divina”, e há de libertar a Terra, fazendo voar alto a bandeira da sua civilização, sobre as ruínas de Londres, Paris, Nova Iorque e outras capitais do “Ocidente coletivo”.

Nesta refrega não há nem compromisso nem dúvida. O inimigo é, na tradição do controverso jurisconsulto Carl Schmitt (1888-1985), “ideal”, no sentido em que não disputa (como o “inimigo real”) bens materiais ou território, mas uma doutrina, uma essência, ou a totalidade do ser.

Neste tipo de inimizade, a “vitória” é o desaparecimento do outro. A noção de “negociações” perde assim todo o sentido. Voltamos aos tempos em que a Al-Qaeda declarou guerra ao mundo, mesmo sem que este a tivesse declarado a ela. E nesse tabuleiro, só podia haver, da parte de Bin Laden, conversão ou morte.

Pode perguntar-se se este ponto de vista é o pensamento oficial do Kremlin, ou apenas o palpite mais ou menos informado da senhora Simonyan. Convém não exagerar nem minimizar. Lembro-me de a diretora do RT ter enviado ao então nosso programa (meu e do Martim Cabral) na SIC Notícias, Sociedade das Nações, uma equipa para perceber os intérpretes, o formato, o conteúdo, os meios, a direção e o objetivo.

Não só se tratou de uma “operação de informação especial” competente, como os resultados chegaram diretamente às cadeias do poder e da decisão, em Moscovo.

Simonyan não é assim a sua própria pessoa, sozinha numa espécie de romantismo da morte. O que diz reflete, de muitas maneiras, uma crescente corrente maximalista e preocupante. ●

Opinião

pt-pt

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282626036915077

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