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A justiça do bom senso

Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

A juíza Gabriela Assunção, do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que tem a cargo a instrução do processo de Manuel Pinho e Ricardo Salgado, arrisca-se a fazer história escrevendo num acórdão aquilo que sempre foi evidente. A instrução é, por definição, um momento célere e não deve ser visto como um julgamento antecipado. É o que está escrito pela juíza ou pode ser deduzido de parte do que escreveu.

Numa espécie de triunfo do bom senso sobre o “complicómetro” jurídico, a magistrada judicial declarou a fase de instrução de um processo judicial como “um momento célere”, destinado a avaliar a suficiência dos indícios para levar os arguidos a julgamento. Por isso, não aceitou ouvir 42 testemunhas, nem apreciar uma perícia médica sobre o diagnóstico da doença de Alzheimer de Ricardo Salgado. Invoca, em favor de uma boa administração da justiça, nesta última parte, uma razão de meridiana razoabilidade:

“Não sendo invocada a possibilidade de existir uma patologia incapacitante ou anomalia psíquica aquando da prática dos factos”, torna-se inútil, nesta fase, a sua discussão e ponderação.

Assim, a instrução do processo da EDP, em que Manuel Pinho é julgado por corrupção, o célebre caso em que é acusado de ter sido um assalariado do universo BES/GES no governo de Sócrates, terá, basicamente, dois momentos “céleres”: as alegações das partes e a decisão da magistrada. Como sempre deveria ter acontecido.

Sejamos claros: a juíza Gabriela Assunção exerceu plenamente a sua autonomia de decisão e marcou as regras de gestão da instrução, como é sua estrita obrigação. Sempre devia ter sido assim. Não deixou, ao contrário de outros juízes de instrução, que se impusesse uma estratégia dilatória das defesas, através da indicação de dezenas de testemunhas e da discussão interminável de perícias pouco ou nada tangíveis.

Nos últimos anos, as defesas dos arguidos que podem fazer resplandecer o garantismo judicial através do dinheiro, afagaram o ego de alguns dos juízes de instrução. Transformaram-nos em verdadeiros juízes de julgamento, retardaram a ação da justiça, arrastando para a lama da morosidade a credibilidade desta, em particular tudo o que se relacionava com a fase de inquérito. Nunca foi uma coisa inocente. Muito menos o mero exercício, legítimo e constitucionalmente consagrado, de um democrático direito de defesa. Foi, tão-só, uma aposta na criação de um pântano de recursos, incidentes, suspeições, sabendo que na perceção pública sobre o funcionamento dos tribunais quem sai de rastos são estes, não os arguidos. É nesse pântano, aliás, que medra o arrastamento processual vergonhoso dos casos de Sócrates e do chamado “universo BES/GES’, procurando a prescrição dos crimes e a inviabilização de um julgamento. É por aí, por esse caminho espúrio, que, depois, se consegue a diabolização de decisões que, para lá do seu objeto primordial, como a celeridade de uma instrução, também podem querer mitigar males maiores. Como acontece, de resto, no caso da EDP, que envolve Pinho e Ricardo Salgado, onde também se procura evitar que se queimem prazos em matéria de medidas de coação. Na verdade, nunca se percebeu que o alarido habitualmente feito em torno das alegadas injustiças, erros ou omissões, de uma acusação, nunca procure um julgamento rápido. Nunca se percebeu que procurem apenas um triunfo na instrução, uma vitória na secretaria ou a dilação eterna dos processos. Não é saudável para ninguém. Muitas vezes, nem sequer para os clientes. Não o é para quem tem a responsabilidade de administrar a justiça, mas também nunca será para um arguido que seja efetivamente alvo de erro judiciário ou de um abuso de poder. Nesse ambiente, apenas ganharão os que, tendo consciência dos seus crimes, procurem uma manigância processual para escapar. Todos aqueles que, por exemplo, como Manuel Pinho, acham que podem roubar à vontade e que isso não deve ser considerado pela lei, pela sociedade e pelos seus pares, mais do que um pequeníssimo ilícito fiscal, sempre suscetível de ser reparado pelo dinheiro, jamais pela frequência da hotelaria prisional. Ou como Ricardo Salgado que, pela conjugação da idade com a anomia geral, sabem já estar a salvo da justiça dos homens. ●

Opinião

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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