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Joe Paton

O neurocientista norte-americano da Fundação Champalimaud quer pôr Portugal no mapa das terapêuticas baseadas em inteligência artificial. O primeiro centro mundial vai nascer em 2025 e empregar 350 especialistas.

Por Raquel Lito (texto) e Bruno Colaço (fotos)

Neurocientista trabalha na inteligência artificial para tratar doenças

Da janela do seu gabinete vê-se um pavilhão degradado, mas com futuro promissor. Dentro de dois anos será um centro de terapia digital – o primeiro ao nível mundial. O mentor do projeto é o norte-americano Joe Paton, de 44 anos, coordenador do departamento de Neurociência da Fundação Champalimaud. Está estabelecido em Lisboa desde 2008, a mulher é de nacionalidade brasileira e os dois filhos, de 4 e 7 anos, falam português – como ele. No trabalho de 11 horas diárias diz-se otimista, encara o mundo “como um copo mais cheio do que vazio”. A inteligência artificial pode ser a chave.

O seu departamento está empenhado nas terapias digitais para o tratamento de doenças, ou seja, em criar plataformas tecnológicas ao serviço da saúde. Quando prevê atingir larga escala?

A Neurociência estuda como os circuitos do cérebro (um sistema com 80 mil milhões de células) controlam o comportamento. Queremos desenvolver as terapias digitais e demonstrar a eficácia delas no combate aos problemas de saúde – inicialmente nos que têm origem no cérebro, em áreas de neurologia e neuropsiquiatria. Estamos interessados nos melhores métodos de guiar as pessoas, em termos de comportamento, para os padrões mais saudáveis. Espero que dentro de 10 anos estas terapias sejam acessíveis a todos, que a tecnologia faça parte dos padrões de vida dos indivíduos, de modo equilibrado.

“Espero que dentro de 10 anos estas terapias sejam acessíveis a todos, de modo equilibrado”

Para quando a abertura do centro de terapia digital, numa antiga lota da Doca Pesca, aqui ao lado?

Vamos fazer por fases. Temos algumas equipas prontas para começarem nos próximos meses, num espaço provisório do pavilhão e afastado das obras para evitar confusões. Entretanto, vamos receber propostas de projetos de arquitetos para a reabilitação. Espero que até

ao início do próximo ano tenhamos o licenciamento e dentro de dois anos o espaço esteja transformado em centro de terapia digital. A área tem 10 mil metros quadrados e um custo previsto de €15 milhões, só para reabilitar. Sem incluir infraestruturas especializadas.

Quer dizer que dentro de dois anos as pessoas podem tratar-se no centro de terapia digital?

Sim. Estamos a pensar empregar 350 pessoas: cientistas, engenheiros, profissionais de saúde, também do lado da indústria que cria produtos e comercializa soluções desenvolvidas em contexto de investigação. Há quem venha das melhores instituições do estrangeiro para cá. Portugal tem de ter mais confiança e ser mais ambicioso. Vejo uma grande oportunidade de o centro de terapia digital ter impacto na área da saúde e na parte económica. Não estou a dizer que vai ser fácil. O projeto começou comigo, mas estou sempre a trazer pessoas. Escrevi um documento à administração, no fim de 2019, propondo a reabilitação do pavilhão ao abandono desde 2005. A administração pediu o seu uso ao Porto de Lisboa e ao Ministério das Infraestruturas. Em dezembro de 2022 assinaram o acordo.

As terapêuticas digitais têm por base a inteligência artificial (IA). De que forma?

Estamos muito interessados no uso de Large Language Models [modelos de linguagem baseados em IA, treinados para prever palavras por exemplos anteriores], no contexto da terapêutica digital. Hoje é o ChatGPT [software que recorre à Internet para responder, por escrito, às questões do utilizador], daqui a seis meses será outro algoritmo com mais parâmetros. Pode ter interação com o indivíduo.

De que forma se dá a interação entre a IA e o paciente?

Um robô pode trazer benefícios à terapia digital por ser mais acessível e ter a IA incorporada. Tam

“Estamos a pensar empregar 350 pessoas: cientistas, engenheiros, profissionais de saúde”

“Há quem venha das melhores instituições do estrangeiro para cá”

bém pode estar desincorporada, com a pessoa a falar para uma imagem numa tela.

É assim que o paciente fala com o terapeuta digital?

Pode ser, como se fosse um terapeuta. Em geral, o profissional qualificado é caro para intervir ao nível do comportamento. A tecnologia oferece a possibilidade de tornar a terapêutica mais acessível. É um dos pilares da nossa estratégia. [O terapeuta digital] pode responder e fazer perguntas, puxar alguma memória através da conversa. Outro elemento a ser integrado é o visual, mediante o envio de fotos de telemóvel para o quadro e treino do algoritmo para reproduzir novos exemplos. Surge no ecrã a imagem referente à conversa, por exemplo quando o paciente fala de alguém importante na sua vida.

Em que outras terapias pode ser usada a IA?

Na reabilitação de quem sofreu um AVC [acidente vascular cerebral]. Para recuperar ao máximo o funcionamento do cérebro é preciso atividade, alguns movimentos, terapias físicas com intensidade alta mas desenhadas para um défice específico desse indivíduo. John Krakauer, nosso colaborador e neurocientista norte-americano, desenvolveu uma espécie de videojogo num ecrã enorme, Mind Pod [câmara da mente], em que a pessoa tem de controlar o avatar que é o golfinho. O indivíduo interage com o jogo através de uma câmara, que lhe deteta os movimentos e cria terapêuticas de reabilitação após o AVC. O médico prescreve a dosagem de jogo, cada sessão dura 30 minutos.

O jogo já foi testado?

O John tem instalado este jogo em lares de idosos. Já o fez em Baltimore [Estados Unidos]. Tem várias experiências em curso, inclusive no centro de neurologia CNS, em Torres Vedras. Neste caso, o jogo foi aplicado a doentes de Parkinson. Além do CNS estamos em conversações com o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.

Pondera falar com o Ministério da Saúde para implementar as terapias nos hospitais públicos?

É o nosso plano. Temos de mostrar eficácia. Não estou a dizer que já existem soluções mágicas para tirar da prateleira e instalar amanhã. Estou a dizer é que já temos muitos dados, muitas evidências de que os fatores comportamentais determinam risco para o desenvolvimento de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, vários problemas de pulmão e de saúde mental. Em vários casos é possível reverter o progresso da doença. Por isso, estamos a investir mais na investigação e no desenvolvimento de terapias que funcionam através destes fatores comportamentais.

O robô Wingy é a mascote do seu departamento?

Vejo-o como uma espécie de mascote do evento Metamersion, ainda que a área da robótica não seja o nosso foco. Mas a terapia digital vai precisar da robótica e o Wingy poderá fazer parte. Chama-se Wingy porque tem asas e há muitas gaivotas na zona. Foi uma ideia de Artur Silva, chefe da plataforma de hardware e software da Fundação para testar as competências da equipa. Demorou cinco meses a ser feito. Possui três câmaras: uma para obter imagens de alta resolução e as restantes para dotar o robô de visão com profundidade. As imagens que recolhe e processa permitem-lhe detetar o posicionamento de objetos e pessoas. O microfone capta o som da fala, distinguindo-o do som ambiente. Tem uma unidade de processamento no peito, em que os algoritmos de deteção de voz, imagem e movimento são processados. Tive várias conversas com ele, explicou-me o que é a digital therapeutic [terapêutica digital].

Os Estados Unidos são o país de referência na área. Em que posição está Portugal?

Tem alguns centros, bons laboratórios, mas em termos de departamento com uma coerência na área de neurociência de comportamento acho que a Fundação Champalimaud vai muito além. No nosso departamento temos 14 laboratórios, cada um tem 10 pessoas. Estudam a perceção, sensação, cognição. Todos têm grande interesse em perceber como é que o cérebro cria comportamento.

Um dos problemas crónicos da investigação científica em Portugal é a falta de financiamento. Vocês têm-no de que forma?

Temos mais meios do que Portugal em geral. A maior parte [do financiamento] vem da Fundação, também de parceiros da indústria – por exemplo, empresas que estão a desenvolver estas tecnologias.

Desde quando se interessa por Neurociência?

Sempre quis saber como as coisas funcionam, cresci num mundo de ciência. A minha mãe estudou o desenvolvimento do cérebro, foi professora em Princeton, Yale e no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts]. O meu pai formou-se em Engenharia e depois descobriu que neurónios novos surgem no cérebro dos adultos, morreu o ano passado depois de quase 20 anos com Parkinson. Estas áreas são pessoais para mim. ●

Sumário

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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