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2003: A GUERRA DO IRAQUE

Uma guerra anterior com um resultado incompleto, a ameaça da Al-Qaeda e as armas de destruição massiva determinaram a operação. Mas os EUA falharam o day after.

Vasco Rato Professor universitário

Ensaio de Vasco Rato sobre a invasão, a ocupação e tudo o que veio depois

Há vinte anos, no dia 20 de março de 2003, o presidente George W. Bush surgia nos ecrãs de televisão para anunciar o começo da investida militar destinada a derrubar Saddam Hussein, o sanguinário tirano que se apoderara do Iraque em 1979. Pouco depois, um contingente de 160 mil soldados americanos invade o Iraque a partir do Kuwait. Enfrenta resistência mínima, pois os cerca de 400 mil soldados de Saddam despem os seus fardamentos e abandonam o campo de batalha. Com Bagdade sob ocupação, George W. Bush, a 1 de maio, no convés do USS Abraham Lincoln, afirma que, terminadas as operações militares, “a nossa coligação está empenhada em proteger e reconstruir” o Iraque. Tratava-se de uma conclusão precipitada, pois nem a missão militar tinha terminado nem os Estados Unidos possuíam um plano para reconstruir o país.

Um problema antigo 1991

▶ Antes de George W. Bush ocupar a Casa Branca, o afastamento de Saddam Hussein já tinha sido adotado como política oficial do estado americano. Na realidade, as origens da invasão de 2003 ordenada por George W. Bush situam-se na primeira guerra do Golfo Pérsico, de 1991. Em finais de fevereiro desse ano, o exército de Saddam era expulso do Kuwait e efetivamente destruído por uma coligação internacional autorizada pelas Nações Unidas. Celebra-se então um cessar-fogo nos termos da Resolução 687 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que viria a ser aceite pelo regime

QUANDO BUSH ANUNCIA QUE OS EUA VÃO “RECONSTRUIR” O IRAQUE, OS EUA NÃO TINHAM NENHUM PLANO PARA ISSO

de Saddam em abril de 1991.

De acordo com a Resolução 687, Saddam comprometia-se a destruir as suas armas não-convencionais (que usara contra os curdos em março de 1988). Todavia, à medida que os anos passam, Saddam deliberadamente infringe os termos do regime das inspeções delineado pelas Nações Unidas. Com o intuito de obrigar Bagdade a voltar a abrir o país às inspeções, Bill Clinton, em dezembro de 1998, aprova a Operação Raposa do Deserto, que se salda por quatro dias de bombardeamentos que, em última análise, não demove Saddam Hussein. Ao mesmo tempo, o Congresso federal, por determinação bipartidária, aprova a Lei de Libertação do Iraque, assim abrindo o caminho para a política de “mudança de regime” que norteia as administrações de Bill Clinton e de George W. Bush.

Após os ataques da Al-Qaeda de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, Washington enceta uma “luta internacional contra o terrorismo”, que passa, no imediato, pelo derrube do regime dos talibã e pela expulsão da Al-Qaeda do Afeganistão. Cumpridos estes objetivos iniciais, as atenções de Washington viram-se para o Iraque, pois a Administração Bush, secundada pelos serviços de informação da Alemanha, da França, da Rússia e outros países, teme que as armas de destruição massiva iraquianas fossem entregues à organização de Osama bin Laden. Exilados iraquianos alegavam que existiam fábricas móveis de guerra biológica e que os agentes de Saddam percorriam o mundo com a intenção de adquirir tubos e urânio para o seu programa nuclear. Sabe-se, hoje, que muitas destas alegações eram

exageradas ou, simplesmente, destituídas de fundamento. No entanto, convém recordar que, nos termos da Resolução 687, cabia a Saddam Hussein provar que destruíra os seus stocks de armas de destruição massiva. Nunca o fez. Como se sabe, essas armas não foram encontradas e, pouco depois da conquista de Bagdade, o tenente-general James T. Conway, comandante da I Força Expedicionária de Fuzileiros Navais, reconhecia que “simplesmente não estão lá”. A partir desse momento, a legitimidade da intervenção estava ferida de morte.

Preparar o uso da força 2002

▶ Os arquitetos da política externa americana acreditavam que, em 1991, quando George H. W. Bush recorre às armas para obrigar o Iraque a abandonar o Kuwait, o presidente desperdiçara a oportunidade de depor o ditador. Dez anos depois, o plano estratégico da Administração Bush (filho) visava corrigir esse erro histórico. Partindo da premissa de que o Médio Oriente jamais seria estável enquanto Saddam permanecesse à frente dos destinos do Iraque, a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, traçada na sequência dos ataques de 11 de setembro, afirmava que a paz e a estabilidade regionais impunham a democratização do Médio Oriente. Esse processo – a chamada agenda de liberdade da Administração Bush – começaria pelo derrube de Saddam, gerando assim uma espécie de big bang geoestratégico que provocaria um efeito de contágio nos países circundantes. Visa-se, pois, reordenar a carta política regional.

A estratégia ganha consistência em outubro de 2002, quando o Congresso federal autoriza o presidente Bush a utilizar a força para derrubar o regime iraquiano. A lei passa por unanimidade no Senado e obtém 360 votos favoráveis (contra 38 desfavoráveis) na Câmara dos Representantes. Apesar de acreditar que as armas “não representam uma ameaça iminente à nossa segurança nacional”, o então senador Joe Biden foi apenas um dos muitos Democratas que apoiou a decisão. À semelhança de outros adeptos do uso da força, entendia a guerra como parte de uma “marcha para a paz e a segurança” no Médio Oriente. Mais tarde, com o Iraque em plena guerra civil, Biden acabaria por aventar a divisão do país em três estados: xiita, sunita e curdo.

Com a guerra no horizonte, o presidente Bush, pressionado por Tony Blair, decide solicitar às Nações Unidas uma nova resolução a autorizar a guerra. Talvez não tivesse antecipado a resistência de “coligação antiguerra” englobando a Rússia, a China, a França e a Alemanha. Enquanto o eixo franco-alemão contesta Bush, a maioria dos estados europeus, em nome da solidariedade transatlântica, declara-se favorável à invasão. Politicamente desgastante, a inconclusiva discussão nas Nações Unidas não dissuade Washington de proceder com a invasão.

A ocupação 2003

▶ Consumada a conquista de Bagdade, inicia-se a fase da ocupação. Revelar-se-á desastrosa porque as autoridades americanas – e, em particular, o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld - simplesmente não dispunham de um plano viável de ocupação do país. Partiram do pressuposto que o derrube do ditador conduziria – por si só – ao estabelecimento de uma democracia funcional que, por sua vez, permitiria a retirada rápida do contingente militar americano. Deveras irrealista e irresponsável, a abordagem provoca o caos e a sangrenta guerra civil

SOBRE AS ARMAS DE DESTRUIÇÃO MASSIVA, O COMANDANTE DOS FUZILEIROS RECONHECIA QUE “SIMPLESMENTE NÃO ESTÃO LÁ”

O ENTÃO SENADOR JOE BIDEN FOI APENAS UM DOS MUITOS DEMOCRATAS QUE APOIARAM A DECISÃO

que posteriormente alastra pelo país. Demonstra, também, que os políticos americanos não estavam preparados para aceitar os sacríficos de sangue e de tesouro inerentes à ocupação e à reconstrução nacional do Iraque.

Nomeado chefe da Autoridade Provisória, Paul Bremer comete erros crassos que tornam a violência inevitável. Dissolve o exército iraquiano e expulsa praticamente todos os membros do Partido Ba’ath do aparelho de Estado. Funcionários com experiência em administrar escolas, hospitais, estações de tratamento de água e refinarias de petróleo eram sumariamente afastadas das suas atividades. Em resultado desta decapitação do aparelho de Estado, de um dia para o outro centenas de milhares encontram-se no desemprego, sem meios de subsistência. Não admira, pois, que muitos viessem a colaborar com a resistência. Com efeito, um exército de libertação rapidamente se transforma num exército de ocupação numa nação inundada de armas.

Em finais de 2004, em resultado do caos e da violência que abalava o país, os americanos isolam-se no seu quartel-general, na chamada Zona Verde de Bagdade. No quadro de insegurança provocado pelo vazio de poder, projetos de reconstrução nacional – por exemplo, a geração de eletricidade e a distribuição de alimentos – passam a ser impossíveis de concretizar. Quando, em março de 2004, os EUA entregam o Ministério da Saúde aos iraquianos, 40% dos medicamentos “essenciais” não se encontravam nos hospitais. Gera-se um ciclo vicioso de insegurança e violência entre xiitas (ferozmente reprimidos pelo governo de Saddam) e sunitas. Dirigido por um xiita, o novo governo iraquiano opta por perseguir a minoria sunita, empurrando-a assim para os braços da Al-Qaeda no Iraque. Ao mesmo tempo, a influência do Irão junto do governo xiita iraquiano consolida-se e o Movimento Sadrista retira-se do governo para se transformar num exército insurgente. Brutal e corrupto, o Estado iraquiano nunca verdadeiramente recuperou das desastrosas medidas de Paul Bremer.

O fracasso geopolítico 2022

▶ Não obstante a presença dos 2,500 militares americanos que permanecem no país como “conselheiros” do governo iraquiano, o grande vencedor da guerra lançada por George W. Bush foi o Irão, que viu a sua influência aumentar no Iraque e, por conseguinte, no chamado arco xiita que se estende até ao Líbano. O reforço do Irão, por sua vez, empolou a rivalidade deste com a Arábia Saudita, o mais importante aliado dos Estados Unidos desde 1979, ano em que o Xá fora derrubado pelos ayatollahs que constituíram a República Islâmica. Essa hostilidade saudita levou Teerão a acelerar o seu programa nuclear, que constitui uma ameaça existencial a Israel, o aliado pivô dos Estados Unidos no

Grande Médio Oriente. Recentemente, em larga medida em resultado dos erros da Administração Biden, Washington tem vindo a perder influência junto de Riade. Na semana passada, sob patrocínio da China, assistiu-se à reconciliação entre sauditas e iranianos, confirmando o crescente isolamento de Washington na região.

Dir-se-á que as dificuldades enfrentadas pelos americanos no Iraque e no Afeganistão diminuíram a capacidade de resposta do país face aos desafios colocados pela emergência da China e pelo revisionismo russo. Estes rivais de Washington utilizaram a guerra para reforçar doutrinas soberanistas que excluem a intervenção nos assuntos internos de terceiros. Dito de forma diferente, neutralizaram o poderio americano, tornando os custos de futuras intervenções militares consideravelmente mais elevados. Eis uma das razões que explica a forma cautelosa como Biden reagiu à invasão russa na Ucrânia.

O Iraque fez consideráveis avanços desde 2003. A expectativa de vida aumentou, o produto interno bruto cresceu e a produção de petróleo (quase 90% da receita do país) mais do que duplicou. Não obstante o progresso, a política iraquiana continua a ser marcada pelo impasse e pela imprevisibilidade. A bem dizer, não se pode descrever o país como uma âncora da estabilidade. Na região, o “efeito dominó democrático” pretendido pelos americanos não se materializou. A Primavera Árabe de 2011 saldou-se pela guerra civil na Líbia, na Síria e no Iémen. No Egito e na Tunísia, instalaram-se novos poderes autocráticos. Instalado na Casa Branca, Barack Obama derruba o ditador líbio Muammar Kadafi e cria um Estado falhado mergulhado no caos. Na Síria, a sangrenta guerra civil terminou com a vitória da família Assad e, não menos importante, a Rússia voltou a ter um papel relevante em toda a região. Perante este rol de fracassos, Joe Biden, em novembro de 2022, prometeu que “vamos libertar o Irão”. Pelos vistos, as lições dos anos mais recentes não penetraram as paredes da Sala Oval. ●

NOMEADO CHEFE DA AUTORIDADE PROVISÓRIA, PAUL BREMER COMETE ERROS CRASSOS QUE TORNAM A VIOLÊNCIA INEVITÁVEL

Sumário

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