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Homens da mala há muitos (1)

Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

A questão do financiamento partidário sempre me apaixonou. É uma matriz essencial de compreensão da política, da sua independência ou da falta dela. De compreensão da integridade (ou da falta dela) na gestão do interesse e do erário públicos. De entender a capacidade de decidir com imparcialidade, isenção e transparência. De decifrar quem faz da política um mero mercadejar – utilizando uma palavra ultimamente em voga – com o cargo que se ocupa e o poder que o acompanha, como forma de ir pagando os favores de quem assina o cheque ou envia a mala carregadinha de notas. Enfim, é pelos mecanismos de financiamento partidário que se avalia muita da saúde de uma democracia. Por cá, o tema sempre foi esguio, digamos assim. Para não dizer pior e ser acusado de populista, amigo do Chega, ou coisa pior, acrescento que as políticas públicas sobre o tema sempre foram tímidas, confusas e pouco eficazes na promoção da seriedade. O financiamento dos partidos e das campanhas comporta, aliás, algumas das histórias mais sombrias da democracia portuguesa. Alguns dos contos mais proibidos, evocando Rui Mateus, um homem que sabia muito disto. Contos cobertos pelo velho manto do pacto de silêncio, a tal omertà siciliana, muito difíceis de investigar pelo jornalismo e pela justiça.

Por estes dias, causou certa comoção uma entrevista do advogado Manuel Magalhães e Silva ao Público, a Ana Sá Lopes, em que fez um relato um pouco mais pormenorizado do ambiente que se vivia em Macau quando ali exerceu funções públicas. O dinheiro, afirmou e é certo, vinha em malas carregadas para os partidos. A afirmação tem um rigor histórico de que não se duvida, mas é hoje indemonstrável, seja qual for o prisma.

Na verdade, quando nos anos 90 se falava dos dinheiros da política, o máximo que os dirigentes dos partidos estruturantes do regime assumiam era que recebiam financiamento externo, dos grandes blocos ideológicos em que estavam integrados – da Internacional Socialista às grandes fundações alemãs ligadas ao SPD e aos conservadores e liberais alemães. Tudo justificado pela necessidade de consolidação do regime na área da social-democracia e do socialismo democrático. Tudo em nome de combater eventuais aventuras militares e, sobretudo, o radicalismo da extrema-esquerda e do PCP, que contava com a solidariedade financeira do bloco soviético. O resto, o dinheiro das malas por baixo da mesa, era tudo secreto. Não havia lei que obrigasse a revelar fosse o que fosse.

Hoje, os segredos são menos. É verdade que veio dinheiro de Macau, para o PS, sim, mas também muito para o PSD. A Iniciativa Liberal tem andado muito excitada com os pecadilhos macaenses dos socialistas, o que se percebe porque é um partido novo e terá uma memória histórica seletiva. A verdade, porém, é que Macau foi um poço sem fundo para todos. Pagou também outros partidos e políticos, que não apenas a candidatura presidencial de Mário Soares. Pagou até movimentos cleptomaníacos como foi a tentativa de lançar a candidatura de Rocha Vieira, através da Fundação Jorge Álvares, feita no minuto 92 da saída de Portugal daquele território chinês, e que Jorge Sampaio dinamitou em boa hora. Mas a Junta Autónoma das Estradas (JAE) e o dinheiro europeu aplicado no betão cavaquista, dominados pelo PSD, também pagaram muitas campanhas, desde logo criando um prémio para os empreiteiros que articulassem a conclusão da obra com o calendário eleitoral. A JAE foi um festim para muitas famílias. Dominada pelo famoso grupo dos Sete Magníficos, um grupo de altos quadros da área do PSD que mandava em tudo, a JAE passou a ser gerida a partir do Ministério das Obras Públicas, liderado por Ferreira do Amaral, e pagou campanhas, deu percentagens generosas a empresas de jornalistas, vergonhosamente encarteirados, constituídas na hora, que promoviam a divulgação da grandiosa obra cavaquista. O seu orçamento generoso está, aliás, na origem de algumas das maiores agências de comunicação hoje existentes. Esses jornalistas abraçavam a arte da propaganda política tanto nos órgãos de comunicação social onde trabalhavam, como através das campanhas publicitárias adjudicadas às suas unipessoais, para promover a inauguração de um viaduto ou de meia dúzia de quilómetros. A JAE enriqueceu gestores, políticos e todo o tipo de facilitadores. Pagou ligações de autoestrada quase diretas às propriedades de alguns dos gestores, estava recheada de homens da mala. Homens da mala houve muitos, ao longo destes quase 50 anos de democracia, e todos eles merecem o nosso interesse. Antecipando as desculpas, caro leitor, por trazer aqui um tema tão maçador neste belo tempo de estio, prometo continuar, na próxima semana, a contar-lhe alguma coisinha do que sei sobre isto. ●

Opinião

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2022-08-11T07:00:00.0000000Z

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

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