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ARAMBURU TORNA INTERESSANTE O BANAL EM 800 PÁGINAS

“Um pobre homem” de 54 anos decide suicidar-se e entretanto escreve um diário. As suas confissões ocupam as mais de 800 páginas deste novo romance do espanhol Fernando Aramburu, que sucede ao multipremiado Pátria, adaptado à televisão pela HBO e que vendeu mais de um milhão de exemplares em Espanha.

O “pobre homem”, Toni, não parece ter motivos para se matar. Os bilhetes anónimos que recebe por email, ridicularizando-o, não o justificam, e só se arrepende de duas coisas: ter vivido com a ex-mulher e não ter amado o suficiente o filho. Pensa muito nos pais e no irmão, que detesta. Tem uma cadela chamada Pepa, uma boneca sexual chamada Tina, que é o seu ideal feminino (a misoginia é prato forte aqui), e um amigo de extrema direita. Professor de filosofia, lê Goethe, Montaigne e Saramago, mas é incapaz de considerações brilhantes sobre o que viveu ou o rodeia. Então, para quê lê-lo?

A maior originalidade de O Regresso dos Andorinhões é o protagonista não possuir qualidades, nem as desejar, e poupar na pirotecnia estilística. Espécie de Big Brother literário, com um único concorrente, expõe, a nu e cru, a vida de um cinquentão amargurado, cuja revelação da intimidade, página a página, se torna radical na sua “normalidade” e mesmice. Através da ironia sarcástica e maldosa que assoma na prosa do narrador, o autor pisca o olho ao leitor: o que aqui se lê foi imaginado para ser igual ao que se vive, mas é pura ficção e crítica social. Toni é o Dom Quixote pós-moderno, sem propósito nem feito particular, mas cuja conjugação única de realidade e autoefabulação se revela preciosa.

É sempre um desafio para o tradutor – e depois, para o leitor – trazer à língua portuguesa a vertente multiétnico do mundo descrito por Bernardine Evaristo, vencedora do Booker em 2019 com o retrato da diversidade feminina contemporânea em Rapariga, Mulher, Outra. Regressada agora com Mr. Loverman, sátira narrada na primeira pessoa, num linguajar nada canónico, que remete para o sotaque brasileiro, por ser a voz de um homem nascido em Antígua, nas Caraíbas. Septuagenário, casado, pai de duas filhas e com um neto, reformado de um bom emprego numa fábrica da Ford, fã de Shakespeare e sempre aprumado até ao pormenor do alfinete de gravata, Barry mantém uma relação amorosa com outro homem há décadas e, cansado da vida dupla, está prestes a revelá-lo à mulher, Carmel. “Vou vomitar 50 anos de mentira, desencanto e autodestruição, tudo de jorro escada abaixo, uma golfada direta às costas dela”, escreve no primeiro capítulo. Até ao final, fraqueja várias vezes na hora da confissão, mostrando como é difícil destruir preconceitos: não será Barry homofóbico, apesar de gay?

Sem sabermos se chegará a assumir-se, vamos percebendo como se enredou na situação. Só que, quando a ação recua (até aos anos 60) o ângulo e o estilo mudam: cada frase que enquadra o passado é um repto a Carmel, em formato de ladainha.

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2022-08-11T07:00:00.0000000Z

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