Cofina

SURF, TUBARÕES E FAMÍLIA

Tinha medo do mar, mas com 13 anos sagrou-se campeão europeu depois de pagar a inscrição e foi o primeiro português a chegar ao Mundial de Surf. Agora tem uma escola e um restaurante e dedica-se à família.

Por Carlos Gonçalo Morais

Tiago “Saca” Pires em entrevista: os êxitos da carreira, o susto no Havai e a mudança com os filhos

Sentado na esplanada do seu restaurante de praia, na Ericeira, Tiago Pires contou à SÁBADO os sacrifícios que fez para atingir o topo do surf, as vitórias, as frustrações e as peripécias de 15 anos no circuito mundial e o que está a fazer no pós-carreira.

Como é que nasceu a sua ligação ao mar e ao

surf?

Eu passo férias aqui na Ericeira desde que nasci, na praia de São Lourenço, mas até aos 5/6 anos tinha medo do mar, chegava à praia, começava a chorar e queria ir-me embora. Depois, passei a ser um miúdo que não saía da água, passava as férias dentro de umas piscinas naturais que se formam num dos lados da praia de São Lourenço, só com pedra no fundo. Mais tarde comecei a fazer bodyboard, também porque o meu irmão mais velho, o Ricardo, começou a fazer surf.

Quem é que o ensinou a nadar?

Ninguém, até hoje não sei nadar. Quer dizer, sei nadar na medida em que uma pessoa vai adquirindo alguma técnica como profissional de surf. E consigo estar bem debaixo de água – mas se me puser numa piscina vou nadar todo torto, não tenho técnica nenhuma.

Em 1994, com 13 anos, sagrou-se campeão europeu de sub-14, em Inglaterra. Praticava surf há quantos anos?

Tinha cerca de três anos de competição. Fomos para o europeu de seleções sem qualquer expectativa por sabermos que os franceses, os ingleses e os espanhóis eram favoritos. Ganhei e foi uma grande surpresa. Eu não era um surfista muito talentoso, mas era muito esforçado e determinado. Acho que isso foi a chave do sucesso da minha carreira.

Foi difícil entrar no campeonato por causa das despesas?

É verdade. Na altura, o surf era um desporto muito pequeno e a federação tinha poucos meios. E pediram a todos os surfistas 60 contos – era muito dinheiro – para representarmos a seleção, com a promessa de que quando voltássemos ia chegar a verba do Estado. Tive de fazer um crowdfunding pela família e patroparei. cinadores. A verdade é que esse dinheiro nunca foi pago pela federação, fiquei chateado e dececionado.

Foi a partir daí que viu que podia fazer vida do

surf?

O meu irmão já competia ao nível nacional, mas apesar de ser um excelente surfista nunca foi um bom competidor. E isso dificultou a que a minha mãe visse com bons olhos os meus primeiros passos no surf, porque achava que seria mais um filho a chegar chateado a casa todos os fins de semana porque foi ao campeonato e perdeu. Essa vitória serviu para clarificar aos olhos da minha mãe que eu tinha realmente potencial.

Os seus pais foram a Inglaterra ver esse campeonato da Europa?

Não. Fomos em duas ou três carrinhas de nove lugares de Portugal para Inglaterra. Fizemos Lisboa-Santander e lá apanhámos um ferry que nos levou até ao Sul de Inglaterra. Depois ainda tínhamos duas ou três horas de carrinha até Newquay.

Nessa altura apenas treinava ao fim de semana ou também durante a semana?

Só treinava ao fim de semana e nem todos, pois às vezes estava uma tempestade brutal e não conseguia vir. Eu tinha que sair de Lisboa à sexta-feira ao fim da tarde – apanhava a célebre carreira da Mafrense. Passava o sábado e o domingo dentro de água e voltava no domingo ao fim do dia, mas aí conseguia sempre boleia.

A sua célebre alcunha - o Saca – é desse tempo?

O Saca é uma alcunha que o meu pai me deu em bebé. É uma história muito engraçada que eu, quando fiz o meu documentário, em 2016, desvendei publicamente. Toda a gente pensa que é devido a eu “sacar” resultados, ondas, mas não: em bebé, andava sempre com as fraldas cheias, e o meu pai dizia: “Anda cá Saquinha, anda cá meu caga na saquinha.” Na Ericeira, o meu grupo de amigos ouvia estas coisas e começava a gozar: “Ó Saquinha, ó Saquinha”, e depois passou de Saquinha para Saca e assim ficou.

Estudou até que ano?

Fiz o 12º, com 18 anos, e média de 13, na área de Humanísticas. Depois Nos últimos dois anos já começava a viajar, faltava às aulas e era muito difícil conciliar.

Beneficiou de uma certa tolerância dos professores? Fazia testes noutras alturas?

Beneficiei, mas não tive esse tipo de apoio quanto aos testes. Eu era tão compenetrado e esforçado nas aulas que os professores percebiam que eu merecia essa ajuda. Estabeleci um compromisso com a minha mãe que era acabar o 12º ano para me tornar profissional de surf, e queria cumprir aquilo o mais rápido possível. Queria livrar-me da escola para me poder dedicar de corpo e alma ao surf. E isso aconteceu nesse ano.

Ao nível de patrocínios, já tinha um bom contrato em 1999/2000?

Tinha um calendário com cerca de 15 campeonatos fora de Portugal, um bom contrato era o que me pagasse o suficiente para poder viver e levar um treinador comigo em todas estas viagens. A Billabong pediu-me um título europeu e eu logo em 1999 ganhei todas as provas e consegui o título europeu júnior.

Em 2000, na estreia no World Qualifying Series (WQS), quase conseguiu a qualificação para o principal escalão do surf, o World Championship Tour (WCT).

Na última prova, no Havai, fiquei em 2º. Se tivesse ganho teria conseguido os pontos para me qualificar para o WCT no meu primeiro ano.

Acabou por consegui-lo apenas em 2007. Porquê?

Aquilo que me faltou nesses seis anos de circuito (WQS) foi a regularidade. Talvez devido a representar um país sozinho, eu era algo ansioso. Tinha resultados, mas sempre que estava num ponto alto do ranking, muito perto dos lugares de qualificação para o WCT, começava a ficar muito nervoso e a coisa descambava. Isso aconteceu em 2002, depois de ganhar um campeonato de 5 estrelas no Japão.

Quando chegou ao WCT, ficou durante seis anos entre os 22 melhores surfistas do mundo. Mas nunca ganhou uma prova do WCT. Isso deveu-se ao nervosismo?

Acho que nem sempre foi o nervosismo. Quem acompanhou as

“Em bebé, andava sempre com as fraldas cheias, e o meu pai dizia: ‘Anda cá meu caga na saquinha.’ E fiquei com a alcunha de Saca”

provas onde consegui os meus melhores melhores resultados percebe o que estou a dizer. Fiz três meias-finais, e em pelo menos uma delas, em França, quem olha bem para aquilo consegue contestar as pontuações. O surf é um desporto avaliado por humanos, não são coisas factuais, são avaliações. Os júris também vibram, têm ídolos enquanto surfistas, mas têm de os pontuar e de igual maneira perante outros que, se calhar, naquele dia estiveram um bocadinho melhor, e às vezes as notas não são totalmente corretas. São discrepâncias mínimas, estamos a falar de décimas ou centésimas, mas que podem ser decisivas.

Mas há essa desilusão por não ter ganho?

Tenho realmente algum dissabor de não ter ganho, mas eu carregava o abrir portas para um país, e todos os resultados que eu fazia era sempre “a primeira vez que isto aconteceu” - e parecendo que não, são momentos difíceis de gerir emocionalmente. Tive também de lutar contra paradigmas sociais: quando assumi a primeira vez que queria ser campeão do mundo fui muito criticado em Portugal, pelos surfistas mais velhos – achavam-me arrogante, vaidoso. Isso era difícil de gerir, mas tinha uma equipa muito coesa.

Há inimigos de estimação no circuito profissional?

Há sempre quezílias pontuais, mas não tenho inimigos no surf. Especialmente quando estamos no WQS, queremos muito chegar ao WCT, são “sete cães a um osso”, estamos sempre a competir, fervemos e há momentos em que temos menos paciência. E acaba por ser natural que tenhamos comportamentos menos bons, às vezes há faltas de respeito nos heats. Também há assim umas classes mais elitistas dentro do circuito, lembro-me que quando entrei nem sabiam onde era Portugal, pensavam que eu era de Porto Rico por causa das iniciais PRT.

O surf é um mundo de gente bonita, de glamour. É fácil deslumbrar-se?

É fácil, mas a chapada também é muito rápida, o efeito desse deslumbramento. Conheço alguns surfistas que se deslumbraram e não conseum guiram voltar ao mais alto nível.

Qual foi o maior susto que teve no mar?

Foi aqui na Ericeira, na praia dos Coxos. Um dia em que entrei na água meio adoentado, febril e não consegui discernir bem que vinham ondas grandes, mandei-me das pedras e fui cuspido para fora da água, num sítio bastante assustador, com uma altura significativa de pedras. Pensei que ia desta para melhor. Fiz corte no calcanhar e levei seis pontos. Podia ter sido muito pior.

Alguma vez viu um tubarão numa prova?

Vi um tubarão em 1998, na final do mundial de juniores, no Havai. Havia uma espécie de recife que ia aparecendo à superfície, tínhamos que caminhar um pouco e depois remar para a onda. Eu e outros dois surfistas estávamos a entrar na água e, de repente, a praia toda fica a ver um tubarão a comer uma tartaruga, muito perto da areia. Os surfistas que estavam no heat nem se aperceberam, mas nós os três, que íamos competir a seguir, ficámos em choque, à espera que parassem a prova.

E a prova foi interrompida?

Não. Houve um silêncio, o tubarão desapareceu, e depois disseram: “Surfistas do próximo heat, podem continuar a ir para a água”, quase como se fosse uma coisa normalíssima. Passado poucos minutos, ouvimos do speaker da prova: “Surfistas do próximo heat, subam para cima das pedras, imediatamente.” Ficámos os três superassustados, eu estava tipo: “Tirem-me daqui.” Esperámos dois ou três minutos e depois disseram-nos que podíamos continuar.

E fez o heat?

“Há umas classes elitistas no circuito. Quando entrei pensavam que era de Porto Rico por causa das iniciais PRT”

Sim. Mas eu quase que não fiz ondas nesse primeiro round, estava na água só a olhar para todo o lado, nem me preocupei em competir. Depois fui perguntar à organização o que se tinha passado, o speaker até era o português Nuno Jonet, e ele disse-me que apareceram dois tubarões: o primeiro – que eu tinha avistado ainda na areia –, de seis pés [1,80 metros], e um segundo de 10 pés [três metros], a fazer 100 metros em três segundos na nossa direção, quando estávamos a remar em cima das pranchas. Nós nem nos apercebemos desse segundo tubarão, que entretanto se foi embora.

Treinava quantas horas por dia?

Treinava todos os dias de manhã e à tarde e havia um dia da semana que descansava. Alternava também com trabalho de ginásio, como na pré-época, antes de ir competir na Austrália, que eram as primeiras provas do ano. Depois, quando chegamos a uma determinada altura da nossa vida, adquirimos tanta experiência que o nosso tempo de treino é menor, mas mais qualitativo.

Tinha grande cuidado com a alimentação e as horas de sono ou era descontraído?

Tinha cuidados extremos. Lá está, eu fui um surfista que por não ter sido um talento fora de série, tive que trabalhar muito e também “ir construindo a minha casinha”, a minha base muito sólida. Fui arranjar força a outras coisas: ao trabalho com o meu psicólogo, ao trabalho físico – e no trabalho físico eu sabia que para render no ginásio, quanto melhor eu comesse, quanto melhor eu dormisse, tudo ia ajudar, tudo ia caminhar na mesma direção.

Deixou a competição em que ano?

Em 2015, mas deixei o WCT em 2014. No ano seguinte, entrei num projeto para fazer um documentário, quis estar num ambiente de competição e fui para o WQS porque queria filmar a “passagem da tocha” ao Frederico Morais e ao Vasco Ribeiro. Então viajámos um bocado juntos e eu fui documentando tudo nesse ano.

E desde aí, já retirado dos circuitos, vai todos os dias ao mar?

Não, nem pensar. Tenho uma filha de 2 anos, um filho com 7 que dormiu muito mal durante quatro/cinco anos, portanto fui vendo os surfs, principalmente matinais, condicionados. Depois comecei a enveredar pelo empreendedorismo e meti-me nalguns projetos. Mas o surf vai continuar sempre até ao fim da vida.

Mas passa-se alguma semana em que não entre no mar?

Sim, várias semanas. Tive também uma lesão grave no joelho. De 2018 para cá, diria que estive 20 meses fora da água devido a lesão.

Tem uma escola de surf e um restaurante. E que outros projetos profissionais se seguiram à carreira de surfista?

O primeiro projeto pós-competição foi abrir uma agência de talent management – de gestão de carreiras, onde trabalho com alguns atletas –, que também organiza eventos e faz ativações de marca. A grande fatia do meu tempo está lá, no trabalho da ReAct. Também investi numa empresa de distribuição de marcas de surf.

O seu filho mais velho já gosta de surf?

Mais ou menos, ele é muito de futebol. Fez surf o ano passado em França, pela primeira vez, mas a água lá é quente, aqui é sempre gelada. Não vou forçar nada. Quero que sejam os meus filhos a decidir o seu próprio futuro. ●

“O vai continuar sempre. Mas de 2018 para cá, diria que estive 20 meses fora da água devido a lesão”

Sumário

pt-pt

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/283081302992708

Cofina