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Livro

Criada num rancho isolado, assistiu às traições do pai, foi medicada muito cedo, desenvolveu umabulimia grave e incendiou dois quartos antes de morrer – de overdose.

Por Ana Taborda

A vida atribulada de Edie Sedgwick, a musa de Andy Warhol

Tinha tudo para ser uma entrada muito pouco triunfal. Ele chegou com um velho casaco de smoking (sujo), as calças que usava para pintar (cheias de nódoas), uns sapatos caríssimos (igualmente sujos), e uma peruca cinzenta. Ela vestia uma espécie de pijama lavanda, tinha o cabelo com madeixas prateadas e uns brincos enormes, falsos. Andy Warhol e Edie Sedgwick eram provavelmente o par mais excêntrico na inauguração da exposição Three Centuries of American Painting, em abril de 1965, no MoMA, o mais importante museu americano, descreve Alice Sedgwick Wohl, irmã de Edie. Mas a partir desse momento a imprensa nunca mais os largou. “Chamaram mais a atenção do que a primeira-dama americana, Lady Bird Johnson, que era convidada de honra e patrocinadora da exposição”, acrescenta Alice, 90 anos, sentada na sua casa em Portugal, nos arredores de Sintra.

“A minha irmã tinha uma qualidade: por onde quer que passasse, chamava a atenção. E não era só por ser bonita, há muitas pessoas bonitas. A Edie fazia o que lhe apetecia e todos ficavam vidrados nela. E o Warhol nunca tinha tido esta experiência. Era muito tímido, tinha dificuldade em falar e vergonha de si próprio, mas uma vontade imensa de ser famoso. E a Edie era a fama narcísica.” Muitos anos mais tarde, o artista diria que foi Edie que o fez começar a usar spray prateado no cabelo. “Copiei-a porque queria ficar parecido com ela, sempre quis parecer uma rapariga”. Houve logo uma espécie de simbiose, acrescenta Alice. “Se algum dia fizessem um filme sobre ele, queria que o papel de Andy Warhol fosse representado por Edie.”

Poucos dias depois de se conhecerem, a 26 de março de 1965, numa

EDIE SEGDWICK E WARHOL ERAM TÃO COBIÇADOS QUE LHES ENVIAVAM LIMUSINAS PARA IREM A FESTAS

festa de aniversário para o dramaturgo Tennessee Williams, Warhol e Edie tornaram-se inseparáveis. “Eram o casal mais procurado de Nova Iorque. Nenhum evento, por mais grandioso e exclusivo que fosse, era um sucesso se eles não estivessem lá. Chegavam a enviar-lhes limusinas para garantir que iam. Mas assim que chegava a uma festa, Edie já estava pronta para a próxima. Iam a quatro ou cinco por noite”, descreve Alice no livro que estará à venda no dia 16 deste mês – As it Turns Out, Thinking about Edie and Andy –, 51 anos depois da morte da irmã.

Juntos, Edie e Warhol viajaram para Paris e Londres, foram fotografados para a Vogue e para a Paris Match, ele introduziu-a no mundo das artes e da cultura, ela nas discotecas e bares glamorosos. “A ela não lhe interessava nada senão viver. Não sabia nada, não lia, adorava dançar e andar a cavalo”, acrescenta Alice. Uma vez, no Crazy Horse Saloon, em Pa

ris, perguntou ao pintor Salvador Dalí como se sentia por ser um escritor tão famoso. Também não sabia quem era Andy Warhol quando se transformou na estrela de vários dos seus filmes. “O que é isso, Pop-Tart?”, perguntou na primeira vez que entrou no estúdio do artista, a famosa Factory, em Nova Iorque, onde tudo estava pintado com um spray prateado e um sofá tirado da rua tanto podia ter pessoas a maquilharem-se como a flirtar, muitas vezes sob o efeito de drogas – geralmente anfetaminas. Warhol estava a filmar Vinyl quando Edie chegou ao estúdio com as suas madeixas prateadas, vestido preto e um cinto de pele de leopardo. “Mandou-a sentar-se numa arca e a Edie ficou lá durante quase todo o filme, a fumar e ocasionalmente a beber de um copo branco”, descreve Alice. Até que começou a dançar – sempre sentada – e rapidamente dominou o filme onde não estava sequer previsto participar. “Transformou-se numa estrela do dia para a noite. De tal forma que Andy quis fazer um filme só sobre ela, o Poor Little Rich Girl [pobre menina rica].”

Durante muito tempo, era isso que Edie era para a irmã Alice, historiadora de arte, que em 1964 veio pela primeira vez a Portugal. “Uma menina mimada, que só gastava dinheiro.” Há várias histórias sobre as compras de Edie, que lhe enchiam os armários, a parte debaixo das camas e muitos outros móveis. Uma vez, abriu a janela de uma limusina e atirou para a rua uns sapatos acabados de comprar. Durante o dia, encomendava frequentemente caviar e blinis e à noite pedia três e quatro pratos em restaurantes – que comia seguidos, com intervalos para vomitar. Quando deixou de conduzir, contratou um motorista. Depois de o motorista bater com o carro, passou a chamar limusinas. E na última vez que viu a irmã Alice levou uma caixa de música “caríssima”, da Tiffany&Co, para o sobrinho bebé. Alice suspeita que as contas eram pagas pela mãe. E quando o dinheiro faltava – e faltava muitas vezes – Edie roubava.

A vida isolada no rancho

Criada num rancho isolado na Califórnia, a musa de Warhol sabia muito pouco do mundo – chegou a pagar o dobro por um almoço no Ritz porque não fazia ideia de quanto devia dar de gorjeta; quando se mudou para Nova Iorque, mandava vir café e sumo de laranja para o apartamento. Como aliás via a mãe fazer no rancho – pegar no telefone e fazer encomendas. Alice também passou por isso. “Até muito tarde nunca tinha entrado num supermercado. Já tinha casado e ainda mandava vir coisas das lojas. Fomos tão incapacitados que tínhamos medo, tínhamos a sensação de que não se podia, era perigoso.”

Doze anos mais velha, Alice demorou a perceber que a irmã era mais do que uma menina mimada. “Se tivesse pegado no mundo, o virasse ao contrário e o sacudisse, não podia ter encontrado duas pessoas mais opostas, de maneira que eu não percebia o que estava à minha frente”, admite Alice. Tudo mudou quando, quase 50 anos depois da morte de Edie, viu, na Addison Gallery, em Andover (Inglaterra), um ecrã com duas imagens da cabeça da irmã. “E ela era tão viva, tão extraordinariamente viva que eu não conseguia tirar os olhos dela (diz-se assim? Couldn’t take my eyes?).” O filme, cópia única, como a maior parte das películas de Warhol, tinha sido descoberto numa gaveta. “Só

foi exposto uma vez, no MoMA. Eu não o tinha visto, mas sabia que existia. Fiquei deslumbrada, porque vi o que o Warhol tinha visto. E pensei: talvez valha a pena escrever o que tenho.” No primeiro capítulo do livro – O Passado –, Edie e Warhol ainda estão longe de se conhecer. Mas é no passado que está aquilo que, segundo Alice, viria a destruir a irmã – Edie morreu em 1971, aos 28 anos, com uma overdose.

A sétima mais nova de oito irmãos foi também a que mais tempo viveu num rancho onde só entravam família, empregados e algumas visitas. “Vivíamos totalmente isolados. Nunca tinha pensado nisto, até começar a escrever no isolamento de Covid… A primeira vez que fui ao cinema tinha 17 anos. De maneira que quando a Edie foi ter com o Warhol nem sabia o que era um filme”, explica Alice. Até aos 13 anos, Edie teve aulas ali mesmo. Era uma espécie de menina selvagem, a quem os pais davam tudo. “A maior parte de nós fomos espancados durante toda a vida e estávamos habituados. Fuzzy [como era suposto tratarem o pai] batia-nos com uma escova de cabelo, mas não a Edie.” Ela era a única que conseguia ficar com os cavalos preferidos dos irmãos, que convenceu os pais a mandar fazer móveis à medida, desenhados por ela, em forma de coração, para o seu quarto.

Saiu pela primeira vez do rancho em 1956, mas não aguentou estar longe de casa. E até aos 19 anos acabou por viver a maior parte do tempo com os pais. A chave para a sua

“A MAIOR PARTE DE NÓS FOMOS ESPANCADOS DURANTE TODA A VIDA. MAS NÃO A EDIE”, CONTA A IRMÃ ALICE

morte precoce estará precisamente aí, defende Alice, que recusa a tese de que foi Andy Warhol a destruir a irmã. Em 1957, quando foram passar o Natal a casa, os irmãos não chegaram a ver Edie. “Disseram-lhes que estava doente”, conta Alice, que nessa altura já se tinha afastado de uns pais “cruéis”. “Tudo o que sabiam era que estava na cama. A cada dois dias o médico vinha a casa dar-lhe uma injeção. Deve ter sido tão doloroso que só anos mais tarde Edie contou a sua versão da história: ‘Tinha entrado na sala de estar e visto o pai numa cena de sexo com uma jovem casada que todos conhecíamos. Fuzzy seguiu-a, espancou-a e depois telefonou ao médico a dizer que ela era louca.’” Foi nessa altura, suspeita Alice, que a irmã terá tomado pela primeira vez tranquilizantes – uma forma de a manter fechada num quarto escuro. Nem a mãe, que há anos encobria as traições do pai, acreditou nela. “Durante muito tempo achei que a história não era verdade, porque a minha mãe adorava-a e a Edie era uma mentirosa profissional. Mas agora acredito. Esta história é a chave da tragédia dela, porque a partir daí ficou drogada.”

A diva de Warhol e Dylan

Pouco depois desse episódio, os pais resolveram deixar Edie em Viena com uma família aristocrática, uma forma de a tornar numa pessoa “civilizada”. Estavam ainda no hotel quando desistiram: Francis Sedgwick percebeu que, mesmo em público, a filha não conseguia controlar aquilo que hoje seria uma bulimia grave e que na altura ainda não tinha nome. “O meu pai viu que ela comia, vomitava, comia, vomitava e mandou a minha mãe levá-la a um hospital psiquiátrico. Foi a única vez que ouvi a minha mãe chorar”, conta Alice, que durante nove meses visitava a irmã quase todas as semanas. Mesmo em Silver Hill, Edie não melhorou –quando baixou dos 45 quilos e deixou de ter menstruação, foi internada noutro hospital psiquiátrico e submetida a um tratamento com choques elétricos. Dali saiu aparentemente bem, primeiro para Cambridge, onde estudou Escultura com

uma prima, depois para Nova Iorque, uma mudança feita com o seu Mercedes Sedan.

Foi em Nova Iorque que Edie decidiu ter aulas de dança e tentar ser modelo. Nessa altura, Warhol estava ainda a transformar-se em Warhol. “Ele via de maneira diferente. Passava pelas autoestradas sem fim da América e não se focava nas paisagens, mas nos letreiros gigantes com figuras de dinossauros, moinhos, coisas kitch e pop. A onda que ele estava a surfar era uma onda que muitos artistas começavam a explorar, mas só ele percebeu que o público estava preparado. O Warhol estava a viver no futuro e sabia.”

Ao seu lado, Edie tornou-se tão famosa que começou a atrair outro núcleo, o do músico Bob Dylan. “Uma vez o Dylan foi à Fábrica, e pediu um quadro ao Warhol. O

Warhol ofereceu-lho, mas pouco depois soube que ele o tinha trocado por um sofá e ficou furioso”, conta Alice divertida. Seria Edie a afastar-se da estrela da pop art – e não o contrário – garante a irmã. Tudo aconteceu em janeiro de 1966, num jantar, conta Alice no seu livro. Edie sentia que não se conseguia aproximar de Warhol e que os seus filmes a faziam parecer ridícula. E fez um anúncio: Dylan ia fazer um filme e ela ia aparecer nele. Quando saiu do restaurante – de facto acompanhada pelo músico, que a foi buscar –, passou a fazer parte de um grupo onde havia mais heroína do que anfetaminas.

Nesse mesmo ano, 1966, adormeceu com um cigarro aceso na mão, incendiou o apartamento onde vivia e fez com que todo o edifício fosse evacuado. Seis meses mais tarde, já a viver no Chelsea Hotel, repetiu a cena. As queimaduras que fez nas mãos não a impediram de dançar. Nada, aliás, a impedia de dançar. Quando um acidente de mota a obrigou a usar um molde na perna, só o tirava quando a impedia de deslizar pelas pistas – para o substituir por uma tala feita no momento com cabides de festas e gravatas dos convidados. E, claro, continuar a dançar. Morreria em 1971, depois de um casamento que durou menos de um ano. “Não foi o Warhol que destruiu a Edie. Era inevitável. Eu pensava que ele lhe dava a liberdade de viver, mas ela não era livre. Não era só a droga, mas a relação com os meus pais, o controlo absoluto que eles tinham estabelecido.” ●

Sumário

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