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Primeira Pessoa

Por Lucília Galha Fotografia Miguel Baltazar

Uma dadora de óvulos fala do processo de doação

Ana Rita Marques, 38 anos, fez três doações de óvulos que já deram origem a quatro gravidezes. Dois bebés pertencem à mesma família. Ainda não é mãe, e talvez já não venha a ser. E não considera que o que fez tenha alguma coisa a ver com paternidade.

Se aparecer alguém a dizer que é seu filho, qual seria a sua reação? Não é meu. Eu não tenho direito sobre estas crianças. Eu dei o meu material genético. Só. Fiz três doações de óvulos e teria feito mais, se fosse possível [a lei portuguesa prevê que uma mulher possa doar ovócitos três vezes]. Estas três doações deram origem a quatro bebés, dois deles pertencem à mesma família. É só isso que sei, que houve quatro gravidezes que correram bem. Mais nada. Os pais destas crianças têm de ter confiança no processo, de que não vai aparecer alguém do nada a reclamar seja o que for. Porque aqui nem se pode falar de paternidade.

Eu nem sequer sabia que as mulheres podiam doar óvulos. O assunto surgiu um dia em conversa com umas colegas no trabalho. Foi no fim de 2015 – trabalhava como assistente operacional no Hospital de Setúbal. Interessei-me, li sobre o assunto e inscrevi-me. Fi-lo numas quantas clínicas privadas e também no banco público. Só precisei de preencher um formulário online.

Não sabia se podia ser mãe, já tinha tentado engravidar numa relação anterior e não consegui; mas a principal razão foi ajudar as mulheres que querem ser mães e não conseguem. Não quero parecer fria, mas estou a doar óvulos que deito fora todos os meses com a menstruação. E isto pode mudar a vida de muitas mulheres. Porque não ajudar?

Antes de se iniciar o processo, é preciso fazer uma bateria de análises exaustiva e há uma consulta com um psicólogo. Quem acha que vai ter algum tipo de poder paternal em relação às crianças que vão nascer não é elegível. No entanto, autorizei que dessem os meus dados se as pessoas em causa um dia me quiserem procurar. Se me quiserem vir conhecer não tenho problema nenhum. Às vezes dou por mim a pensar como serão, se estarão bem e em que famílias. Mas não olho para crianças com esse tipo de pensamento.

Sensação de dever cumprido

Da primeira vez fiquei ansiosa. Penso que só nos chamam quando há uma família para fazer o match e que fazem por haver alguma parecença física. Iniciei o tratamento hormonal que consiste numas injeções na barriga, durante 12 dias. Fazia-as sempre à mesma hora, depois de jantar. Treinamos na clínica numas borrachas e só saímos quando já temos autonomia no procedimento. Vamos fazendo ecografias, primeiro de três em três dias e, já no final, dia sim, dia não. É então que se marca a recolha, que consiste numa

Não quero parecer fria, mas estou a doar óvulos que deito fora com a menstruação. Isto pode mudar a vida de muitas mulheres

intervenção cirúrgica, com anestesia geral (mas feita em ambulatório).

Não é inócuo, as injeções por vezes deixam hematomas, também me sentia inchada e no pós-operatório ficava com aquela moinha, como quando estamos menstruadas – um pouco mais forte. A terceira doação foi a que me custou mais. Tinha feito noite no hospital e fui fazer a recolha. Era a única hipótese na troca de turnos e teve de ser assim. Tinha dado a minha palavra e as pessoas estavam a contar com isso, como é que eu podia falhar? Isto é um assunto sério. Em dois anos fiz as três doações e da quarta vez fui à clínica só assinar os papéis. Recebi cerca de 800 euros de cada vez – não sabia que era pago quando me inscrevi.

Sempre fui muito radical em relação à ideia de maternidade: achava que uma mulher nasce para ser mãe. Mas até hoje a vida não me proporcionou essa oportunidade. Se não acontecer, terei pena. Talvez faça eu própria uma fertilização in vitro.

Para já, sinto-me como se o meu trabalho estivesse feito: consegui ajudar três casais a realizarem-se. Sei quão desesperante é tentar em vão. Tive uma amiga que fez os tratamentos ao mesmo tempo que eu para tentar engravidar. Ela não conseguiu. Se um dia me voltarem a ligar da clínica, será um orgulho. ●

Sumário

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2022-08-11T07:00:00.0000000Z

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