Cofina

DAVID VS. GOLIAS NOS CORREIOS

Por Bruno Faria Lopes

Concorrentes dos CTT entregam queixas nos reguladores e uma ação judicial: o monopolista está a abafá-los ilegalmente, dizem

A Vasp e a Iberomail têm uma ação de milhões contra o bloqueio dos CTT à sua rede de carteiros e a Premium Green Mail entregou uma denúncia ao regulador. Falam de práticas ilegais que matam a concorrência que a liberalização do setor prometia – e que não chegou.

O “mercado dos serviços postais foi liberalizado no fim de abril, com novas regras que contam trazer benefícios para os consumidores. Esteja informado!”, divulgava no seu site a ANACOM, o regulador das comunicações, em 2012. A promessa era de que a liberalização traria mais concorrentes além do monopolista histórico, os CTT. E, logo em julho e setembro desse ano, duas empresas pediram aos CTT reuniões para discutir o acesso à sua rede de distribuição do correio composta por milhares de carteiros. Dez anos depois, a Vasp Premium e a Iberomail continuam sem acesso viável a essa rede e entregaram uma ação, em curso no Tribunal da Concorrência e Regulação de Santarém, com um pedido de indemnização global aos CTT até 189 milhões de euros. Outro concorrente, a Premium Green Mail, também se queixa de práticas anticoncorrenciais dos CTT – apresentou uma queixa à Autoridade da Concorrência e prepara outra. A liberalização do mercado do correio quase não teve resultados, uma década depois.

Tal como noutras indústrias (energia e telecomunicações), nos correios o investimento para criar uma rede de distribuição é demasiado alto para permitir a entrada de novos concorrentes e a lei é clara ao definir que os prestadores de serviço universal de distribuição (os CTT) “devem assegurar o acesso às suas redes em condições transparentes e não discriminatórias”. A via-sacra da Vasp e da Iberomail sugere que esse acesso não faz parte dos planos dos CTT.

A Vasp Premium enviou a primeira carta aos CTT em julho de 2012 e teve uma reunião em setembro, na qual teve como resposta diversas objeções à elaboração de uma proposta de acesso. A Vasp voltou a submeter um pedido em novembro e só teve resposta no fim de fevereiro do ano seguinte, com um pedido de recusa de acesso à rede naquele momento e uma promessa de análise futura do pedido pelos CTT. Até novembro de 2014, os CTT nada disseram, o que levou a Vasp a apresentar uma queixa na Autoridade da Concorrência.

A história com a Iberomail é idêntica – entre setembro de 2012 e setembro de 2014 nada conseguiu dos CTT e acabou por fazer, como previsto na lei, queixa à ANACOM. O regulador disse, no entanto, não estarem reunidos os requisitos para intervir e a empresa continuou a tentar, sem sucesso, negociar o acesso.

Quem interveio foi a Autoridade da Concorrência, que em 2016 acusou os CTT de abusarem da sua posição dominante ao recusarem o acesso à sua rede de distribuição. O gigante português dos correios aceitou fazer alguns compromissos para passar a cumprir a lei e em julho de 2018 a AdC arquivou o processo, dando esses compromissos como válidos. “A AdC aceitou compromissos propostos pelos CTT que lhes permitiram fixar qualquer preço que quisessem. Sem surpresa, o preço grossista fixado pelos CTT torna inviável a concorrência no mercado”, afirma João Duarte, diretor da Iberomail.

“DEZ ANOS DEPOIS CONTINUAMOS A NÃO TER CONCORRÊNCIA NO MERCADO POSTAL”, DIZ RUI MOURA

As empresas queriam ter acesso apenas ao último elo da cadeia – a distribuição pelos carteiros –, mas a proposta dos CTT é pelo uso de toda a cadeia (preparação e sequenciação do correio, etc.), com um preço que as empresas não consideram exequível e condições que reputam de draconianas. “Agora, a última palavra será dos tribunais: ou os CTT estão a abusar da sua posição dominante para impedir a concorrência, ou este é o único mercado em que é possível fazer dinheiro e ninguém quer entrar”, ironiza.

Os CTT, que têm uma quota de 85% no mercado global, afirmam que “não são monopolistas e rejeitam qualquer acusação de abuso de posição dominante. “O serviço postal é um serviço liberalizado desde 2012 e os CTT concorrem com outros operadores no respeito de todas as regras de regulação e concorrência aplicáveis”, responde fonte oficial da empresa.

Envelopes de graça

Um ex-responsável da empresa, que preferiu o anonimato, mostra-se contra os termos da liberalização legislada em Portugal e acusa as empresas concorrentes de quererem “oportunisticamente” aproveitar só o último elo da cadeia dos CTT o que, na sua visão, encareceria a operação de distribuição do gigante. Os concorrentes pensam de outra forma. “A prova [de que os reguladores não fizeram o suficiente e de que a liberalização não saiu do papel] é que, anos depois, continuamos a não ter concorrência no mercado postal”, afirma o major-general Rui Moura, administrador-delegado do grupo Vasp.

Mesmo no caso raro de quem decidiu investir na sua própria rede de distribuição postal há problemas. É

o caso da Premium Green Mail (PGM), que entregou no fim do ano passado uma queixa na Autoridade da Concorrência contra os CTT por alegado abuso de posição dominante, estando a ultimar a entrega de mais uma denúncia (e tendo entregado outra junto da ANACOM). Para a administração da empresa – que tem uma quota de mercado próxima de 6,4%, sendo a segunda maior – há sinais de que os CTT passaram recentemente a praticar preços predatórios em alguns concursos públicos e a usar indevidamente o seu grande portfólio de produtos para conseguir contratos na área dos correios.

Estes contratos públicos têm ainda pouca expressão no negócio global, mas como são públicos e escrutináveis, permitem à PGM sinalizar junto dos reguladores o que entende serem irregularidades que também podem existir na concorrência por clientes privados.

Um dos exemplos é o de um contrato com o município madeirense de Santa Cruz em maio deste ano, para impressão, expedição e cobrança de faturas para o serviço de água do município. Os CTT apresentaram uma proposta de 369,8 mil euros, quase 30% mais barata do que a do consórcio da PGM e da Altice Empresas. Na impugnação administrativa do resultado desfavorável do concurso, a que a SÁBADO teve acesso, o consórcio aponta que os CTT só podiam apresentar um preço mínimo de 0,418 euros por fatura expedida, o valor tabelado ao abrigo do contrato de serviço universal que os próprios CTT em 2019 reconheceram ser o aplicável a esta situação. Em vez disso, a empresa tirou esta parte da proposta do serviço universal e apresentou um preço “anormalmente baixo” de 0,329 euros, que ainda incluía a oferta dos envelopes, da impressão e dos consumíveis.

Práticas discriminatórias

A PGM identificou este tipo de procedimento em mais dois concursos recentes, um das Águas de Coimbra e outro dos serviços de águas de Oeiras e da Amadora. Ana Serrabulho, diretora executiva da PGM, aponta que estas práticas são feitas de forma “discriminatória e cirúrgica” – nos segmentos onde a PGM vai tentar competir com os CTT – e explica o objetivo das queixas aos reguladores. “Esperamos que as autoridades avaliem, de forma objetiva e urgente, o mecanismo de formação de preços”, afirma. A PGM, acrescenta, é “parte integrante e ativa de um mercado que foi aberto à concorrência há 10 anos” e não pode ser um “mero espectador de bancada”.

A AdC já terá contactado empresas privadas que migraram da PGM para os CTT no fim do ano passado, para perceber os termos das ofertas feitas pelo monopolista, segundo apurou a SÁBADO. Fonte oficial da AdC não respondeu às perguntas da SÁBADO sobre o ponto do processo. Tal como consideram sobre a ação da Vasp e da Iberomail – “não tem qualquer fundamento” –, os CTT respondem “não ter conhecimento de nenhuma queixa da PGM” e frisam que “as alegações não têm qualquer fundamento”. ●

OS CTT FIZERAM UMA PROPOSTA 30% MAIS BAIXA NO CONCURSO E AINDA DERAM OS ENVELOPES E A TINTA

Sumário

pt-pt

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282776360314692

Cofina