Lições da invasão: o ar
Nos últimos 100 anos, o pensamento militar criou as suas doutrinas de “supremacia aérea”. Ou seja, um nível de superioridade tão grande que impeça o inimigo de interferir com as operações da aviação triunfante. Esta pode assim agir ofensivamente com impunidade
A vantagem adquire-se em quantidade e qualidade. Inclui o número e a modernidade das aeronaves de asa fixa e rotativa, as características do seu armamento de ataque e defesa, sensores e sistemas de comunicação, a preparação combativa, treino e experiência de tripulações, a excelência do comando, a superioridade logística e de manutenção, etc.
Para complicar tudo, a supremacia tem hoje também de englobar o domínio sobre engenhos sem ocupantes, incluindo mísseis de longo alcance e drones.
No início da invasão, o Estado-Maior russo anunciou o extermínio da Força Aérea Ucraniana (FAU), bem como os meios aéreos principais da Marinha e do Exército.
A FAU teria sido varrida no solo, anulada a sua infraestrutura conhecida, ou nos céus, por destruição liminar das aeronaves que ousaram empenhar-se em combates diretos.
Cinco meses depois, a FAU continua porém a operar em quase todas as frentes e missões, da patrulha aérea de combate, na defesa das grandes cidades, aos voos de apoio às forças terrestres, reconhecimento, vigilância e ataque ar-terra. Como foi isto possível?
No papel e na prática, a FAU partia numa posição extremamente desfavorável. Por um lado, toda a sua frota era constituída por aparelhos de conceito e fabrico ex-soviético ou russo, embora em muitos aspetos modernizada
nas empresas ucranianas.
Na frente quantitativa, os números eram escassos.
Com a dissolução da URSS, a Ucrânia outra vez independente viu-se com 2.800 aviões, 700 helicópteros e 600 unidades aéreas. O tratado de limitação das forças convencionais na Europa e as várias fases de desarmamento conduziram-na a um rápido declínio, em parte voluntário e racional, em parte forçado e devido à penúria financeira.
Com a invasão em curso, a FAU não tinha mais do que 220 aviões e 40 heQuando licópteros, muitos com demasiadas horas de voo e não fiáveis. No total, a Rússia partia, presumivelmente, com uma superioridade de 20 para um.
Mas as inferioridades notórias foram em parte ultrapassadas por:
– Programas de treino com forças da NATO, em curso desde 2014 (incluindo com a Guarda Nacional Aérea da Califórnia);
– Criação de um vasto sistema de engodos (bases inoperacionais disfarçadas como ativas, aeronaves antigas dispostas no solo com sinais de calor, para simular prontidão, etc.);
– Complexo de pistas secretas, protegidas, camufladas ou improvisadas.
– Fornecimento (desde maio) de milhares de peças, componentes, armamento e sobressalentes pelas nações que tinham sido membros do Pacto de Varsóvia e da União Soviética, e também da ex-Jugoslávia. Mais recentemente, estas passaram a fornecer diretamente aviões e helicópteros.
Isto permitiu a colocação operacional de pelo menos mais 70 a 80 aparelhos, que não requerem treino porque eram modelos há muito conhecidos pela FAU.
Por outro lado, o refinamento de técnicas de combate foi conseguido, na última década, com o papel de “agressor” desempenhado por F.15, F.16 e inclusivamente F.35 ocidentais, representando gerações tecnologicamente presentes no moderno arsenal russo.
Tudo isto, aliado à maior capacidade da defesa antiaérea terrestre, levou Moscovo a ser mais cauteloso no uso da aviação, a partir de junho, sobretudo após a perda de aviões sofisticados e caros como o Su-34 e 35.
A “supremacia” aérea russa de 24 de fevereiro transformou-se em “poder partilhado”, ou substituição de aviões do Kremlin por mísseis de cruzeiro.
O plano “Visão Aérea 2035” prevê uma FAU futura baseada só em tecnologia própria ou não russa, com 12 regimentos táticos multifunções, de drones e de ataque, transporte, missões especiais e treino.
Mas haverá fundos para isso?
E que dimensão nacional irão defender? ●
Opinião
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2022-08-11T07:00:00.0000000Z
2022-08-11T07:00:00.0000000Z
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