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“É necessário restaurar a confiança no mercado de arrendamento”

Alda Botelho Azevedo, investigadora da Universidade de Lisboa, com muito trabalho desenvolvido no estudo da demografia da habitação e no envelhecimento da população em Portugal, é a convidada de André Macedo no âmbito da iniciativa “Pensar o Futuro”, que junta a SÁBADO e a Fidelidade.

“Nós temos um parque de habitação pública absolutamente diminuto, da ordem dos 2%, o que é muito, muito reduzido. Este parque não consegue acudir às necessidades da maior parte das famílias que dele precisam”

gentrificação do centro das cidades, o despovoamento do interior, e o envelhecimento da população, são temas do trabalho de Alda Botelho Azevedo, doutorada em Demografia pela Universidade Autónoma de Barcelona, investigadora e professora na Universidade de Lisboa. Nesta entrevista fala destas realidades e da importância das políticas públicas para reequilibrar o mercado da habitação e ajudar a fixar a população fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

A minha primeira pergunta é sobre a gentrificação. É um conceito complexo, mas que tem um significado bastante claro, não é?

A gentrificação é um grande palavrão, já com algumas décadas. A gentrificação de áreas de cidades como Lisboa ou Porto, verifica-se com a chegada de pessoas – que podem ser nacionais ou estrangeiras – com maior poder económico, com maior capacidade de compra do que a média da população que reside nessas áreas. Essa chegada é um elemento disruptor naquilo que estavam a ser as dinâmicas de mercado, e de relação entre a população e a habitação, que até então se verificava nessas áreas.

A chegada dessas pessoas, em números significativos, muda as dinâmicas na habitação, as dinâmicas comerciais, e até as condições e o custo de vida nesses bairros?

Sim. Para dar um exemplo muito simples, a partir de uma entrevista que fiz num trabalho de campo na Freguesia de Santa Maria Maior, no coração do centro histórico de Lisboa. As pessoas de idade mais avançada viram-se impedidas de fazer operações simples, como pagamento de serviços, quando se substituíram as caixas de multibanco tradicionais pelas máquinas ATM. Nestas não existe a opção de pagamento de serviços. Estas pessoas passaram a ter de fazer deslocações muito maiores para resolver questões quotidianas.

A diferença aqui é a capacidade económica dos recém-chegados? São eles que podem alterar a dinâmica económica do bairro?

Sim, porque vêm mexer com as forças do mercado. O exemplo da habitação é, nesse aspeto, absolutamente claro. Se começa a existir uma procura que tem um maior poder de compra, naturalmente, as pessoas querem vender as suas habitações pelo maior valor possível.

Há também outro tipo de argumento. Zonas de Lisboa que estavam num estado de decadência, de abandono do edificado, foram valorizadas e renovadas. Qual é o percurso normal deste tipo de fenómeno?

Não tenho resposta para isso. Os caminhos seguidos são muito diversificados, de acordo com aquilo que são as intenções e os objetivos das políticas públicas de cada Estado e de cada cidade.

Qual é política pública mais adequada neste caso? Qual lhe parece ser o caminho mais inteligente para tentar evitar que uma cidade se esvazie, mas simultaneamente tenha capacidade para acrescentar estas novas pessoas, estas novas dinâmicas?

Não existe uma receita, uma chave de ouro que possamos aplicar garantindo que os resultados vão ser aqueles que nós pretenderíamos. No entanto, naquilo que é o parque de habitação português existem realmente algumas medidas que poderiam ter efeitos benéficos. Nós somos um país de proprietários, em que 75% da população reside em casas que são ocupadas em regime de propriedade. É um número mais elevado do que a média europeia.

Isto significa que existe um enorme desequilíbrio entre a propriedade e o arrendamento. E se juntarmos a isto aquilo que é a realidade do nosso parque de habitação pública, aí então a diferença para a Europa ainda é maior. Nós temos um parque de habitação pública absolutamente diminuto, da ordem dos 2%, o que é muito, muito reduzido. Este parque não

consegue acudir às necessidades da maior parte das famílias que dele precisam. Portanto, na minha opinião, precisamos de dinamizar o mercado de arrendamento e aumentar o parque de habitação pública.

Como é que se dinamiza o mercado de arrendamento?

Restaurando a confiança. É algo que tenho assinalado várias vezes. Entre inquilinos e senhorios deve existir uma relação de igualdade ao nível de direitos e obrigações, que deve ser incentivada pelas políticas públicas. Por um lado, um inquilino que celebra um contrato de arrendamento deve sentir segurança, e saber que não corre o risco de – dai a um ou dois anos – o senhorio cessar o contrato, ou pedir um valor de renda extraordinário para que o contrato tenha seguimento. Por outro lado, aqueles que são senhorios querem tirar um rendimento dessa propriedade, portanto essa rentabilidade tem de ser assegurada. Não se pode querer que os senhorios estejam a fazer o papel do Estado social, compensando o papel reduzido do parque de habitação pública.

Como é que a dinâmica do Airbnb veio alterar os dados da questão? Barcelona é um dos tais exemplos em que a atividade do alojamento local teve grandes repercussões, e provocou a imposição de limitações ao crescimento dessa atividade.

Num estudo que fiz, com um colega, sobre a atividade da Airbnb, em que comparamos Barcelona com Lisboa, o que é que nós vemos? Verificamos que a atividade desta empresa se centra em áreas geográficas destas cidades que já estão sobrecarregadas com atividades económicas ligadas ao turismo. O que o Airbnb faz é, nessas áreas, retirar do mercado alojamentos que poderiam estar em arrendamento de longa duração e não estão.

Não acha inevitável que a gentrificação aconteça? Que estes bairros populares percam traços da sua identidade neste contexto de procura turística?

Não sei se é inevitável. Falou do caso de Barcelona, onde houve medidas. Tudo depende da vontade política. Daquilo que são os objetivos definidos. Qual é a cidade em que queremos viver. Como é que queremos ter a nossa cidade organizada.

“As pessoas seguem muito as oportunidades de emprego, sobretudo quando se estabelecem, no início da vida ativa. Tentam encontrar as melhores oportunidades. E as áreas metropolitanas tem concentrado as oportunidades”

Do ponto de vista demográfico, o que tem acontecido ao País? Sabemos que o Interior se desertifica, as pessoas saem para as cidades, enquanto, nas maiores cidades, as pessoas saem dos centros… Isto é inevitável, faz sentido que aconteça?

No fundo as pessoas seguem muito as oportunidades de emprego, sobretudo quando se estabelecem, no início da vida ativa. Tentam encontrar as melhores oportunidades. E as áreas metropolitanas têm concentrado as oportunidades. O que faz com que haja um movimento muito grande de população em direção a esses centros. Isso traz, naturalmente, desvantagens e problemas. Há um despovoamento muito grande de boa parte do País neste momento.

Olhando para as cidades médias portuguesas, estas não estão muito desertificadas e pouco dinâmicas se compararmos, por exemplo, com as cidades médias espanholas, que têm muito mais dinâmica, gente e oportunidades?

As cidades médias portuguesas têm uma população envelhecida e não têm sido capazes – com algumas exceções que são de notar – de ser um centro de atração suficiente para que os seus jovens aí fiquem, em vez de rumarem as áreas metropolitanas. Falo nos jovens porque é no fim da escolaridade e no início da vida ativa, que é um momento-chave do ciclo de vida para fazer estes movimentos e tomar estas decisões, que se decide se se fica ou se se sai. E aqui a questão do emprego é muito importante.

E que políticas públicas poderiam ser postas em prática para contrariar estes movimentos, estas realidades de que falamos aqui? Porque a maior parte não são fenómenos recentes.

Exatamente. Não podemos falar nisto como se fosse um fenómeno novo. O que é que é possível fazer? Eu acho que as duas chaves são o emprego e a habitação. As pessoas estão onde têm emprego e onde conseguem pagar uma habitação. Nós não podemos ter a ambição de fazer regressar os que já partiram. Nós temos de garantir as condições para que os jovens, em vez de partirem, se mantenham no sítio onde cresceram e onde têm as suas relações.

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2022-08-11T07:00:00.0000000Z

2022-08-11T07:00:00.0000000Z

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