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Angola

Português, residente em Luanda, acusa justiça angolana de proteger os alegados abusadores da filha de 5 anos. A criança foi entregue à mãe, que é suspeita de consentir os abusos.

Por Cláudia Rosenbusch

O caso da criança suspeita de ter sido violada

C “om violador na rua, nenhuma criança está segura!” As palavras de ordem vão sendo repetidas, uma e outra vez, enquanto o grupo avança pelas ruas do bairro Nova Vida, em Luanda, Angola. São cerca de uma centena. Mulheres, homens e até crianças. “Quem és?” “Maria!!!” “O que é que tu queres?” “Justiça!!”, gritam.

Conceição Kambinda, ativista social, ficou sensibilizada com a história de “Maria”, a criança luso-angolana de 5 anos que, há 10 meses, o Julgado de Menores de Luanda entregou à mãe, a mesma mãe que é investigada por alegadamente consentir os abusos sexuais à filha. “O que mais me convenceu? Foi a parte dos relatórios médicos que um dos principais hospitais de Angola apresentou. E foi o relato da pequena ‘Maria’”, revela à SÁBADO a ativista social e organizadora da marcha.

“Maria” é filha de um engenheiro português de 51 anos e de uma arquiteta angolana de 31. O casal divorciou-se quando a criança tinha 1 ano. A menor começou por viver com a mãe, em Luanda, mas após um episódio de agressões entre a progenitora e familiares, “Maria” ficou ferida e quase a fazer 3 anos passou a viver com o pai na capital angolana. Em 2020, Manuel conseguiu a guarda provisória da criança.

As visitas à mãe há muito que suscitavam apreensão na casa de Manuel Guerra, já que “Maria” evidenciava comportamentos muito sexualizados, mas a “bomba” rebentou em fevereiro do ano passado. Após regressar de um fim de semana com a mãe, a ama Hilária Mário entrou no quarto para verificar a menor. “Ela estava com as pernas abertas e vi sangue a sair da vagina da ‘Maria’”, conta. O pai da menor foi chamado de emergência: “E ela diz-me: o ‘tio’ mexeu, fez assim, meteu o osso. Olhe, caí de joelhos e abracei a minha filha.”

Perícias confirmam o abuso

O relatório médico não encontra patologias que justifiquem o sangramento e verifica que não houve rompimento do hímen, ou seja, não existiu uma violação consumada. Já as perícias psiquiátricas confirmam o abuso sexual.

O relatório do Hospital Psiquiátrico de Luanda refere: “A utente relatou que foi abusada (chupada em sua genitália e mexida com o dedo) pelo tio Carlos que é amigo e pelo tio mau”. E acrescenta: “Demonstrou instabilidade emocional, choro fácil, regressão, sintomas depressivos como a tristeza e mutismo seletivo. Percebemos que os sintomas se afloravam

RELATÓRIO DO HOSPITAL DE LUANDA APONTA QUE “FOI ABUSADA” PELO TIO CARLOS E “PELO TIO MAU”

sempre que a utente fosse visitar a sua progenitora.”

Os “tios” seriam os conhecidos da mãe. O pai avançou com uma queixa-crime por abusos sexuais, mas apenas 12 dias após a criança ter sido ouvida no inquérito, uma juíza do Julgado de Menores de Luanda decidiu entregar a menor à mãe, com o argumento de que o pai estaria a promover a alienação parental. Na sentença, a juíza decidiu pela “permanência da menor (...) à guarda da mãe (…) até ao desfecho do processo do su

posto abuso ‘sexual’ da menor em casa da mãe.”

“É óbvio que há um esforço muito grande para silenciar a minha filha”, garante Manuel Guerra.

Ao longo destes 10 meses, Manuel Guerra só tem conseguido ver a filha na escola e escuta relatos perturbadores, como por exemplo, que a menor continua a manter contactos com os suspeitos. “Em relação ao ‘tio mau’, disse que ele tentou mexer nela e apontou para a região genital. Depois, no Natal, teve contacto com o tio Carlos, e aí em princípio não houve abusos e houve outra situação em que eu cheguei lá (à escola) numa segunda-feira e ela agarrou-se a mim a chorar, não queria falar, e ficou ao meu colo em posição fetal.”

Inquérito aos abusos sexuais não dá sinais de vida

SÁBADO: Porque é que diz que estamos a lidar com pessoas influentes e que conseguem travar os processos?

Manuel Guerra: O que me faz pensar isso é: tem-se matrículas, mas não se investiga, tem-se retratos-robôs associados às matrículas, também não se quer investigar. Temos um indivíduo completamente identificado e nada avança e depois vem um processo que corre em simultâneo ao processo da guarda, passa por cima e atribui a guarda à mãe em condições completamente inconstitucionais.

Ameaças e um atropelamento

Desde que denunciou os abusos, as ameaças de morte tornaram-se uma constante na vida de Manuel Guerra, mas também na vida dos que se mobilizam pela causa de “Maria”. Foi o caso de Isaac Delgado, professor de jiu-jitsu, atropelado, em dezembro do ano passado, quando saía de uma sessão de esclarecimento que promoveu a respeito do caso “Maria”. “Iam dois homens na mota. Logo que me levantei, eles disseram-me que morreria por um problema que não é meu”, recorda à SÁBADO. Apresentou queixa-crime e decidiu “divulgar o caso ainda com mais força” porque, justifica, “é uma criança inocente e eu não estou a fazer nada de errado”.

Os advogados e a mãe da menor não quiseram falar à SÁBADO. Enviámos várias perguntas à Procuradoria-Geral da República de Angola

ISAAC FOI ATROPELADO AO SAIR DE UMA SESSÃO DE ESCLARECIMENTO A RESPEITO DO CASO “MARIA”

que também ficaram sem resposta. O Ministério dos Negócios Estrangeiros diz que o Consulado-Geral de Portugal em Luanda está a acompanhar a situação há um ano, mantendo contacto direto com o pai da menor e a sua advogada, “dentro dos limites das competências dos postos consulares”.

Marcelo esteve com o pai de “Maria” em Luanda

Também a Presidência da República esclareceu que Marcelo Rebelo de Sousa “encontrou-se com o pai da menor, podendo assim ouvir a sua exposição da situação, há alguns meses, em Luanda”. Garante ainda que tem acompanhado o caso “em estrita observância do princípio da não ingerência na administração da justiça de um Estado soberano, bem como transmitiu toda a informação sobre a situação ao primeiro-ministro”. E conclui: “O caso está a ser objeto de apreciação e averiguações pelas competentes autoridades judiciais angolanas, únicas competentes para decidir sobre este lamentável caso.”

Manuel Guerra deposita todas as esperanças no recurso, que está pendente no Tribunal da Relação de Luanda, para recuperar a guarda da filha “Maria”. “Eu quero é a minha filha comigo e em segurança”, diz. A criança completa 6 anos este mês e Manuel Guerra não a vê desde 22 de junho, o dia da festa de encerramento do ano letivo. ●

Sumário

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2022-08-11T07:00:00.0000000Z

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