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A PISTA PORTUGUESA DO ESPIÃO RUSSO

Por Nuno Tiago Pinto

O agente dos serviços de informações militares russos que tentou infiltrar-se no Tribunal Penal Internacional usou dados de um português para criar a identidade falsa

Um agente do GRU que tentou infiltrar-se no Tribunal Penal Internacional e que foi apanhado pelos serviços de informações holandeses usou a identificação de um suposto pai português para forjar a identidade. Não é a primeira vez que operacionais russos tentam obter informações de cidadãos nacionais para fabricar documentos de identificação.

No mundo das sombras em que se movem os agentes clandestinos, haverá poucas coisas mais valiosas do que uma boa (falsa) identidade. Uma que lhes permita passar despercebidos, ganhar a confiança dos alvos para obter informações e que nunca os ligue ao Estado para o qual trabalham. Foi isso que Sergey Cherkasov, um espião do GRU, os serviços de informações militares russos, conseguiu durante cerca de 10 anos: construiu a identidade de um estudante brasileiro, chamado Viktor Muller Ferreira, que passou por universidades na Irlanda e nos Estados Unidos e que, se não tivesse sido desmascarado em abril, teria conseguido infiltrar-se no Tribunal Penal Internacional numa altura em que a instituição investiga os alegados crimes de guerra cometidos

NOS DOCUMENTOS QUE O ESPIÃO RUSSO USAVA, CONSTAVAM OS DADOS DE UM PORTUGUÊS, COMO SEU PAI

por militares russos na Ucrânia e na Geórgia, em 2008.

Tal como todos os “ilegais” – assim são conhecidos os oficiais de informações que atuam na clandestinidade –, a falsa identidade de Sergey Cherkasov foi construída cuidadosamente. “Estes agentes muitas vezes combinam informações autênticas com dados forjados para melhor esconder a sua ligação ao país de origem. Como hoje em dia é praticamente impossível atuar com documentos falsos, por causa dos controlos apertados nos aeroportos, por exemplo, eles precisam de obter documentos verdadeiros mas que não correspondem à pessoa que o usa”, explica uma fonte ligada à comunidade das informações. “Por exemplo: imagine que há um casal que perde o filho num acidente no Brasil. Se eles conseguirem obter os dados

Tribunal Agente russo tentou infiltrar-se no Tribunal Penal Internacional e obter informações confidenciais

▶ de identificação da criança, podem acabar por usar a sua identidade no futuro”, continua outra fonte. “Os russos agem dessa forma com anos de antecedência, muitas vezes décadas. É provável que neste momento estejam a ser criadas identidades para serem usadas apenas daqui a vários anos”, complementa um antigo espião.

Não se sabe exatamente como Sergey Cherkasov obteve a identidade de Viktor Muller Ferreira. Mas ao que a SÁBADO apurou, junto de várias fontes em Portugal e no Brasil, nos documentos de identificação que o espião russo utilizava, constavam os dados verdadeiros de uma mulher brasileira, que surgia como sua mãe e os de um português, Júlio J. E. Ferreira (a SÁBADO opta por omitir a identidade completa), como pai.

O assento de nascimento de Júlio Ferreira, obtido pela SÁBADO na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, indica que se trata de um cidadão português, nascido em 1967, na então Lourenço Marques. Em julho de 1990, o seu nascimento foi transcrito para os registos nacionais. Terá vivido na região de Setúbal onde, em 2002, renovou o bilhete de identidade pela última vez. Apesar das inúmeras tentativas ao longo das últimas semanas, a SÁBADO não conseguiu localizar o seu paradeiro. Nos registos de identificação nacional não consta qualquer outra informação sobre o seu paradeiro ou mesmo se está

O ESPIÃO RUSSO CONVENCEU UM PROFESSOR UNIVERSITÁRIO A ESCREVER-LHE UMA CARTA DE RECOMENDAÇÃO PARA O TPI

vivo ou morto. A família também não sabe dele. Um irmão, contactado pela SÁBADO, ficou estupefacto ao saber o que tinha acontecido. “Há 20 anos que não vejo o Júlio”, diz à SÁBADO Carlo Ferreira.

Os dois conheceram-se tardiamente. “Um dia o meu pai disse-me que tinha tido um filho de uma senhora em Moçambique. Conheci-o nessa altura. Era simpático, educado. De vez em quando vinha a Setúbal e ligava-me para irmos tomar um café. Acho que estudava. Falava de computadores, de fotografia a preto e branco mas nunca passou disso. Um dia disse-me que ia passear, dar uma volta, desanuviar. Nunca mais o vi. Não sei onde está, o que fez, por onde andou”, continua.

Os serviços de informações – que acompanham o caso desde que Sergey Cherkasov foi descoberto – acreditam que na primeira década do século terá viajado para o Brasil, onde se estabeleceu. Terá sido aí que os serviços de espionagem russos se terão conseguido apropriar dos seus dados para criar uma identidade de cobertura para o ilegal russo.

História de cobertura

Sergey Vladimirovich Cherkasov tornou-se então Viktor Muller Ferreira, alegadamente nascido a 4 de abril de 1989 em Niterói, no Rio de Janeiro. De acordo com o site Bellingcat, que conseguiu rastrear o seu percurso ao longo dos anos, o “ilegal” russo trabalhou como agente de viagens no Brasil antes de seguir para Dublim, onde estudou ciência política entre 2014 e 2018. Nesse período fundou um blogue de geopolítica chamado Politics of Us onde, entre outras coisas, escrevia sobre o aumento da democracia nos países em desenvolvimento e chamava “cancro” a Vladimir Putin. Ao mesmo tempo mantinha uma página no Twitter e no Facebook. Em seguida, viajou para os Estados Unidos, onde passou dois anos na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, a uma hora de Washington DC. Aí tirou um mestrado num programa de elite frequentado por militares americanos, jovens diplomatas e futuros espiões. “Ele encaixa num padrão conhecido: a Rússia, entre outras potências estrangeiras, tenta colocar jovens operacionais nas instituições académicas americanas para ajudar a construir as suas identidades de cobertura”, disse um antigo oficial de inteligência à CNN.

Cherkasov foi tão bem-sucedido na sua missão que convenceu um antigo professor a escrever-lhe uma carta de recomendação para se candidatar a um estágio no Tribunal Penal Internacional. “Tenho boas razões para odiar os serviços de segurança russos antes. Agora estou a explodir. Sinto-me zangado, estúpido, ingénuo, cansado. Fui enganado. (…) Escrevi-lhe uma carta. Uma forte, aliás. Sim, eu. Escrevi uma carta de referência a um oficial do GRU. Nunca vou ultrapassar isto”, escreveu Eugene Finkel, que dá aulas sobre genocídio, no Twitter.

A candidatura de “Viktor Muller Ferreira” ao TPI foi aceite. Em abril, o ilegal russo viajou do Brasil para Haia, na Holanda, mas foi impedido de entrar no país: a AIVD, os

serviços de informações holandeses, alertaram a polícia de fronteira para a verdadeira identidade do espião. Cherkasov foi então impedido de entrar no país e enviado de volta para o Brasil. Ao ser detido, tinha com ele uma nota escrita em português com imensos erros ortográficos, que detalhava a sua identidade de cobertura. Os serviços secretos holandeses acreditam que terá sido escrita por ele próprio, em 2010, para memorizar os detalhes do seu percurso – conhecida por “lenda” – que contém informações autênticas (como os dados do português Júlio Ferreira) e impressões pessoais totalmente fabricadas.

Quando chegou ao Brasil, Cherkasov foi detido pela Polícia Federal por suspeitas de uso de documento falsificado. No fim de julho terá sido condenado a 15 anos de prisão. Contactadas pela SÁBADO, nem a Polícia Federal nem a Abin – a agência brasileira de inteligência – responderam às questões enviadas

O ACESSO ENCOBERTO A INFORMAÇÃO DO TPI SERIA MUITO VALIOSO PARA OS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA RUSSOS

até ao fecho desta edição.

O caso viria a ser conhecido apenas em junho, quando a AIVD divulgou ter descoberto e abortado um plano russo de infiltração no TPI, numa altura em que a organização investiga eventuais crimes de guerra cometidos por tropas russas na Ucrânia e na Geórgia, em 2008. “Por esse motivo, o acesso encoberto a informação do Tribunal Penal Internacional seria muito valioso para os serviços de inteligência russos”, escreveu a AIVD no comunicado de imprensa. Uma fonte ligada aos serviços de informações concretiza: “Apesar de ser apenas um estagiário, logo provavelmente sem acesso imediato a informação confidencial, só o facto de ter sido aceite implicava ter acesso ao edifício e ao sistema interno. Essa mera presença poderia ser suficiente para, por exemplo,

inserir algum programa malicioso no sistema informático ou abrir uma porta de acesso a partir do exterior.” Ou seja, poderia reunir informações, recrutar fontes e aceder aos sistemas digitais do TPI. No mínimo, obteria informações para o GRU. Em última instância, poderia influenciar os processos criminais a decorrer no Tribunal.

Documentos valiosos

Esta não é a primeira vez que os serviços de informações russos usam ou tentam usar dados de identificação de cidadãos nacionais. Uma das funções dos espiões colocados, sob disfarce, nas embaixadas russas espalhadas pelo mundo é recolher informações sobre como os diferentes países registam e armazenam dados pessoais. Podem também tentar obter ilegalmente ou forjar documentos cujas informações serão rastreáveis para pessoas reais, vivas ou mortas, ou indivíduos que existem apenas no papel.

Foi o que aconteceu em Lisboa em 2013. No fim de 2012, o Serviço de Informações de Segurança (SIS) recebeu indicações de que um funcionário da Conservatória dos Registos Civis de Cascais poderia estar a passar informações a um agente russo, a viver em Portugal com passaporte diplomático. Durante semanas o SIS seguiu o espião, com o objetivo de perceber que informação estaria a ser acedida. Ao mesmo tempo, o então diretor da secreta portuguesa, Horácio Pinto, pediu a colaboração do presidente do Instituto dos Registos e Notariado, António Figueiredo. A partir daí, uma técnica da secreta passou a verificar os processos a que o funcionário acedia para tentar perceber qual era o objetivo. “Chegámos à conclusão de que estavam a tentar obter dados concretos sobre pessoas, nascimentos, óbitos, para forjarem identidades”, contou na época, à SÁBADO, uma fonte que acompanhou o processo.

As vigilâncias arrastaram-se durante meses. Até que a operação – conduzida na época pelo atual diretor adjunto do SIS, Gil Vicente – culminou na interceção em flagrante do funcionário da conservatória de Cascais a transmitir informação ao agente russo. O caso foi comunicado ao primeiro-ministro e ao ministro dos Negócios Estrangeiros que tratou, depois, discretamente, da expulsão do espião do território nacional.

Em abril, o Ministério dos Negócios Estrangeiros expulsou 10 funcionários da embaixada russa por atividades contrárias à segurança nacional. Nenhum era diplomata

OS ESPIÕES RUSSOS RECOLHEM INFORMAÇÕES SOBRE COMO OS PAÍSES REGISTAM E ARMAZENAM DADOS PESSOAIS

Já o funcionário da conservatória de Cascais teve um processo disciplinar que terá sido arquivado porque não se provou que tenha recebido qualquer contrapartida.

Ao mesmo tempo, o SIS tinha em movimento uma segunda operação de contraespionagem. Um funcionário da embaixada russa começou a deslocar-se com frequência à Conservatória dos Registos Centrais (CRC), em Lisboa, para se encontrar sempre com o mesmo funcionário, com quem se reunia durante períodos de tempo prolongados.

Alertado pela responsável da CRC, Sandra Monteiro, António Figueiredo alertou o diretor do SIS uma vez que, disse na época, aquela situação era em tudo semelhante à da conservatória de Cascais. Horácio Pinto deslocou-se então à sede do IRN – uma visita que acabou por ser registada pela equipa de vigilâncias da Polícia Judiciária que investigava António Figueiredo no âmbito do chamado processo dos vistos gold. De acordo com o que António Figueiredo disse mais tarde ao juiz de instrução criminal, Horácio Pinto tinha-se deslocado à sede do IRN para uma reunião em que ia ser preparada uma “intervenção” na conservatória dos registos centrais, que ocorreu durante o fim de semana. Ou seja, uma equipa do SIS esteve nas instalações para tentar perceber o que o funcionário teria andado a consultar. O segundo agente russo acabou também por ser expulso de Portugal.

Depois destes episódios, o SIS realizou uma formação junto de dezenas de conservadores para alertar para o valor da informação guardada no IRN para potências estrangeiras. Intitulada “Valor e Sigilo da Informação do IRN”, a formação, ministrada por dois espiões do SIS, ocorreu em dois momentos: em Lisboa, a 27 de novembro de 2013, com 50 pessoas; e no Porto, a 10 de dezembro do mesmo ano, com 32 formandos. No fim, os formandos assinaram um acordo de “confidencialidade e dever de sigilo”. Porque nunca se sabe se estarão a lidar com alguém que se move neste mundo das sombras dos espiões. ●

Sumário

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