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Brasileirismos

C Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

O LEITOR CONHECE A HISTÓRIA

de um português pouco inteligente que se dedicava ao tráfico de diamantes? Ele recebia o material de África e depois transportava-o para o Brasil. Um dia, aterrou no Rio de Janeiro, passou pela alfândega e o polícia, sorridente, perguntou: “Tudo jóia?” O português, atrapalhado, respondeu: “Não, senhor agente, metade é roupa.”

A piada foi-me contada por um amigo brasileiro. É boa, porém inverosímil: todos os portugueses, incluindo os mais lentos, sabem o que significa “tudo jóia”. Foram anos e anos de novelas brasileiras que permitiram aos nativos dominar o linguajar da antiga colónia. O inverso seria mais credível: um brasileiro que, aterrando em Lisboa, não soubesse responder a um portuguesismo qualquer.

Essa é a razão por que tenciono enviar o mais recente livro de Fernando Venâncio para o meu camarada paulistano. O título é O Português à Descoberta do Brasileiro (Guerra & Paz) e tem vários méritos, para além do mérito óbvio de Venâncio escrever barbaramente bem.

Para começar, o ensaio é uma advertência aos “puristas” da língua que pensam, e agem, como se a língua lhes pertencesse por inteiro. Falo de eruditos ou prosadores que mostram genuíno horror perante o português do outro lado do Atlântico. Pobrezinhos. Saberão eles que, historicamente, o português foi deixado à solta no Brasil porque Lisboa, ao contrário de Madrid, nunca fez da cultura e da educação uma prioridade colonial?

A observação é de Fernando Venâncio, mas Sérgio Buarque de Holanda avança com números: entre 1775 e 1821, a Universidade do México gerou 7.850 bacharéis e 473 doutores e licenciados. Os naturais do Brasil graduados em Coimbra, no mesmo período, ficaram-se pelos 720.

Se o português do Brasil não passa cartão ao português dos egrégios avós é porque os avós nunca se interessaram muito pela educação dos netos.

Mas os puristas não se limitam a tapar os ouvidos com a música que vem de lá. Também não a suportam do lado de cá, sobretudo quando as crianças, através das suas rações diárias de YouTube, desatam a falar em “celular”, “ônibus” ou “geladeira”.

Um pouco de calma, aconselha o autor: depois do 25 de Abril, quando as telenovelas começaram a espalhar o seu perfume a cravo e canela, o mimetismo dos lusos era muito pior e algumas locuções assentaram arraiais na nossa praça. O “só que” substituiu o “sucede que” sem grandes dramas.

Aqui entre nós, creio que nunca abusei dessa importação. Já sobre o “será que” com que inicio várias perguntas, enfim, que posso dizer? Prende que é malandro.

Apesar de tudo, a influência do Brasil deixou intacta a pronúncia e a sintaxe. E mesmo entre o léxico, convém não entrar em histerias: o “celular”, o “ônibus” e a “geladeira” acabarão por dar lugar ao telemóvel, ao autocarro e ao frigorífico, com uma diferença: conheceremos melhor as diferenças, que são inevitáveis e crescentes.

“Apeteceria viver várias vidas só para saber aonde a língua nos levará”, escreve Fernando Venâncio. Subscrevo e aplaudo: prefiro essa curiosidade sadia ao terror obsessivo de quem quer policiar a língua e enfiá-la na gaiola.

QUANDO CHURCHILL perdeu as eleições de 1945, depois de ter vencido a II Guerra Mundial, consta que a mulher terá dito: “Isto é uma bênção disfarçada.” Churchill, com típico humor, replicou: “Se é uma bênção disfarçada, então está muito bem disfarçada.”

Penso o mesmo quando me dizem que Deus é brasileiro. Este ano, o país vai escolher entre Lula e Bolsonaro. Eu levanto os olhos para o céu e interrogo: “Mas não serás Tu argentino?” De um lado, um admirador confesso de Vladimir Putin. Do outro, alguém que considera Zelensky tão responsável pela guerra na Ucrânia quanto o carniceiro de Moscovo.

Perante estes dois cavernícolas, e sem uma “terceira via” que não envergonhe demasiado (Ciro Gomes, comparado com estes, é quase um Churchill), ficar em casa não é apenas uma opção legítima. É um acto higiénico para preservar o que resta da alma. ●

Crónica

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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