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Ângela Marques

ÂNGELA MARQUES

Ela cozinhava como falava: sem avental nem receita. A história devia ser boa, não me lembro (claro que lembro, era ótima, mas pelo menos duas famílias ficariam indispostas se a repetisse aqui). A cada passo que dava na mise en place, ela parava, virava costas à bancada, e de pano de cozinha na palma da mão, dava mais um spoiler. Sentada num canto com um copo de branco, eu salivava pela carbonara em construção.

A nossa amizade já tinha tido de tudo, mas aquela seria a primeira vez que ela cozinharia para mim comigo na plateia. A verdade? Quem sabe faz ao vivo e ela podia contar-me os Cem Anos de Solidão enquanto cozinhava que nada a afligiria. Nas categorias de amigos, ela não estava na zona “já nos vimos de pijama”, ela habitava o condomínio privado do “já nos vimos literal e metaforicamente nuas”, pelo que podia pôr água a ferver, passar primário numa parede, matar um dragão e contar-me os maiores traumas de infância ao mesmo tempo que eu não duvidava: a carbonara ia sair imaculada.

Recordo aquela noite sempre que a primavera chega e ela começa a andar com os braços leves e soltos. Num dos braços, ela tem uma tatuagem que fala disto: de como uma carbonara pode ser um gesto grandioso, de como o amor pode fazer com que uma carbonara pareça uma degustação perfeita e infinita e de como a vida faz mais sentido quando se tem uma carbonara e uma amiga à mesma mesa.

Esta semana, jantámos juntas e ninguém cozinhou para ninguém. Ela trazia o coração nas mangas e entre garfadas fizemos o que tínhamos de fazer: dissemos bem de nós e mal dos outros, sem desfocarmos de que na vida quem perde tempo são os relógios, não nós.

Creio que as duas sabemos que a vida é capaz de comer as amizades de garfo e faca – de vez em quando é preciso, para a contrariar, servir-lhe um banquete para a lembrar de que nada bate uma relação cozinhada no lume brando do tempo. Sendo bom, aquele jantar foi ótimo – até deu para fazer de conta que aquele porco agridoce chegava aos calcanhares da carbonara dela. ●

ELA PARAVA, VIRAVA COSTAS À BANCADA, E DE PANO DE COZINHA NA PALMA DA MÃO, DAVA MAIS UM SPOILER

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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