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JOÃO PEDRO GEORGE

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

É, CAROS LEITORES. Miguel Sousa Tavares (MST) voltou à carga. Depois dos doridos queixumes contra os apelos “ao silenciamento e ao linchamento moral” dos “novos censores”, que tentam “intimidar e reduzir ao silêncio quem não pensa como eles” (Expresso, 9 de Abril de 2022).

Depois das palavrosas declarações garantindo sobranceiramente que assistimos hoje, por causa da guerra na Ucrânia, “à absoluta falta de seriedade intelectual e a argumentos de puro terrorismo e delação pública”, a um “clima de intimidação concertada sobre o pensamento como nunca antes vivi em 30 anos de escrita em jornais” (Expresso, 14/4/2022).

Enfim, depois de muito medo e angústia e noites sem dormir, depois de ter partido para a clandestinidade – num ambiente destes, de perseguição e terror, em que o cronista se arriscava a perder o emprego e a reputação, e a ser condenado ao ostracismo, como não havia de ser assim? –, MST escreveu mais um pastelão acusatório contra quem diverge radicalmente do seu pacifismo de trazer por casa (”parece que só eu e uma minoria de ‘pacifistas’ – que agora é um termo pejorativo – pensamos assim”).

Disse ele no Expresso, a 6 de Maio de 2022: “Graças a Putin, aqui, no Ocidente, estamos confrontados com uma ofensiva dos novos Cruzados para quem, sorte a deles, tudo se tornou cristalinamente claro e quem assim não vê é fuzilado na praça com um rol de novas ofensas: ‘antiamericanos’, ‘iliberais’, ‘russófonos’, ‘diletantes’” (reconheçamos: isto de chamar “diletante” a um filho da elite portuguesa é uma falta de delicadeza intolerável, está para além dos limites razoáveis).

Para quem está familiarizado com o historial de MST, conhecido pela facilidade com que se encoleriza e dá largas à sua ira verbal, e pela frequência inquietante com que ameaça as pessoas que o incomodam ou contradizem, não deixa de causar alguma surpresa vê-lo agora despir a pele de lobo e envergar a sotaina do pacifista.

É público e notório que MST tem ouvidos melindrosos e se sente facilmente despeitado pelas opiniões discordantes. Que se deixa arrastar para atitudes de retaliação e que responde de marreta na mão, ameaçando partir a cara de quem se atreve a criticá-lo.

Em 2006, quando o acusaram de ter plagiado alguns excertos do romance Equador, MST avisou que o caso seria resolvido “à paulada”.

Antes disso, em Setembro de 1996, Miguel Sousa Tavares manifestara-se disposto a assentar um par de sopapos na pinha de Agapanto Pato (um desconhecido que mantinha uma coluna n’O Diabo, cujo verdadeiro nome, segundo algumas vozes, era Marcelo Rebelo de Sousa): “Tivesse você, Agapanto, ao menos uma cara que se visse e eu enfiava-lhe dois murros nela.”

No espírito beligerante e intransigente de MST, o bom crítico é aquele que se reduz à dócil obediência das qualidades literárias dos seus livros, é aquele que lhe beija as botas e gaba, passivamente, o seu rico e exuberante labor intelectual.

Em 2008, soube-se que a falecida Dóris Graça Dias tinha saído do Expresso por causa de uma crítica a Rio das Flores, que acabaria por não ser publicada porque, dizem as más-línguas, MST avisara que se o texto fosse publicado deixaria de escrever no semanário de Francisco Pinto Balsemão.

Em 2010, Ricardo Araújo Pereira e Zé Diogo Quintela desistiram de colaborar n’A Bola depois de MST ter ameaçado sair do jornal (onde também era cronista) por estar “farto de viver (…) com dois rafeiros atiçados às canelas, dois censores encartados”.

Conforme notícia do Público de 11 de Novembro de 2010, A Bola cortou partes de uma crónica de Zé Diogo Quintela, sem o consultar, em que o humorista dos Gato Fedorento respondia a uma acusação de MST: “Em Janeiro, [Miguel Sousa Tavares, portista declarado] pediu a Pinto da Costa que me processasse. Desta vez, vitimiza-se e ameaça abandonar a sua crónica n’A Bola, pretendendo que o Ricardo e eu sejamos responsabilizados pela sua saída. Depois das queixinhas, uma ameaça de amuo.”

Nem Vasco Pulido Valente escapou ao temperamento irascível de MST: “Numa entrevista ao Expresso, Miguel Sousa Tavares contou um caso, inteiramente imaginário, da minha suposta desonestidade (teria criticado o Equador, sem o ler) e acrescentou alguns comentários desagradáveis. Como é natural, desmenti. Isto bastou para que ele anunciasse por SMS à minha mulher e, a seguir, no Diário de Notícias que ‘ia dar cabo de mim’. Ficou pelo insulto e pela injúria; e pela ameaça implícita de que, se quisesse, revelaria episódios da minha vida pessoal (cinco ou seis) para liquidar a minha figura pública” (Público, 24/11/2007).

MST é um ser habitado por pulsões violentas, gosta de dar plena expansão às suas fúrias: em Agosto de 2011, a propósito de um grafito que alguém fez na Praça do Infante D. Henrique, em Lagos, MST confessou que “dá vontade de agarrar nestes tipos e atirá-los ao mar” (expressão infelicíssima, que lembra os tempos da ditadura argentina de 1976-1983, quando milhares de detidos foram atirados ao mar alto, vivos e drogados, em pleno voo, a partir de aviões militares).

Em face destas e doutras jactâncias, desconcerta um pouco ver agora MST a queixar-se da intolerância alheia e, rodeando-se de mel e borboletas, intitular-se pacifista, quase um monge budista.

Porque a verdade é que MST não consegue suportar a frustração e as contrariedades. As críticas irritam-no. Fazem-no entrar em combustão.

O sonho de MST era ver-se livre delas. Se dependesse dele, estas polémicas seriam logo resolvidas, e rapidamente, arrombando portas e fazendo justiça pelas próprias mãos.

Quando leio as crónicas de MST, tenho quase sempre a impressão de que estou a ler textos escritos em 1940, amarelecidos pelo tempo. Que não mudam de sabor, como um prato de croquetes de carne.

Na sua prosápia de Tarzan do bairro da Lapa, que exalta os valores da força física, do espírito de competição, da violência ritualizada e da exibição de virilidades (touradas, caçadas, etc.), MST raramente se tenta colocar no lugar dos outros, raramente os tenta perceber a partir dos seus pontos de vista.

Ao longo dos anos, MST tornou-se uma caricatura de si próprio, cada vez com mais pose e menos conteúdo.

Proclamar-se alvo de “perseguição” (a sê-lo, MST seria certamente o perseguido mais bem pago do País) e elevar-se ao nível dos mártires da liberdade de pensamento e da revolta contra o estabelecido, é uma coisa fácil e antiga, de largo uso nas classes privilegiadas.

Na Rússia tem sido estimulado e por cá está também em franca expansão (de MST a Boaventura de Sousa Santos).

Para isso, não é preciso muita imaginação: basta ter um descaramento inabalável, dizer-se vítima de uma sociedade cruel e ficar confortavelmente sentado na cruz, à espera da consagração como herói.

Lamentável não é ser um pacifista caceteiro, ou um caceteiro pacifista. Lamentável é a estética da perseguição, sem a perseguição. ●

Sumário

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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