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Pedro Marta Santos

Jornalista Pedro Marta Santos Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

NUMA DAS CENAS mais impressionantes de O Acontecimento, de Audrey Diwan, vencedor do Leão de Prata do Festival de Veneza de 2021, uma rapariga francesa de 20 anos com o sonho de ter uma vida independente em 1963, tenta abortar com uma agulha de croché (a legalização do aborto só chegaria a França em 1975). A cena é filmada de forma discreta, mas uma mulher jovem a arriscar a vida porque o Estado lhe proíbe e a sociedade lhe censura a liberdade reprodutiva é uma paisagem humana cruel. Stephanie Zacharek, crítica da Time conta que, durante o visionamento de imprensa do filme, vários jornalistas saíram no decorrer da cena. Eram todos homens. Os EUA ressurgem agora como teocracia da abjeção depois de uma “fuga informativa” ter depositado no jornal/site Politico um esboço da decisão do Supremo Tribunal dos EUA em que se anuncia que, daqui a um mês, a maioria deste tribunal votará contra a lei da interrupção voluntária da gravidez – o célebre Roe vs Wade, em vigor há quase meio século –, devolvendo aos estados o poder da ilegalização do aborto. Com funcionários de clínicas da especialidade baleados nas próprias casas por organizações “pró-vida” – leiam excertos das histórias de terror reais em Bodies on the Line, lançado em Abril, da repórter Lauren Rankin – e as sondagens a indicarem maioria republicana nas eleições intercalares de Novembro, mais de metade dos estados vão repor a proibição do aborto, mesmo em casos de violação ou incesto. Claro que as maiores vítimas deste controlo judicial e político do livre-arbítrio das mulheres serão as mais pobres, sem capacidade económica para viajar para os estados onde ainda é possível exercerem a sua consciência. Já não se trata de recuar ao período anterior à luta pelos direitos civis. Trata-se de algo muito mais remoto e bastante mais letal: o textualismo, ou a interpretação literal da Constituição tendo em conta o tempo em que foi escrita. Nada existe na Constituição de 1788 que confira o direito ao aborto, logo esse direito não deve existir. Também não existia então o direito ao casamento entre indivíduos de etnias diferentes (os negros eram propriedade, não tinham identidade jurídica). O aborto é a porta de entrada para a reversão de uma miríade de direitos fundamentais. O textualismo é a chave ideológica para abrir essa porta. Foi para isto que Donald Trump colocou no Supremo Amy Coney Barrett, 38 dias antes de perder as eleições. Barrett, mãe de sete filhos, ama de leite dos ultraconservadores, pitonisa dos cristãos evangélicos, professa o textualismo como se fosse a próxima vinda de Jesus e tem o aborto na mira desde os tempos da universidade, considerando-o uma “herança bárbara”. Talvez alguém pudesse mandar uma cópia em DVD de O Acontecimento para casa de Barrett. Mas o estafeta que tenha cuidado: nunca se sabe o que se pode encontrar à porta de idiotas. ●

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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