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Garcia de Orta Ataque informático fez hospital regressar à era do papel

Duas semanas depois de o Garcia de Orta, em Almada, ficar sem sistema informático, continua a fazer-se quase tudo à mão. Há análises que se extraviam e prescrições com letras impossíveis de decifrar. Pode demorar meses a ser resolvido.

Por Lucília Galha

Era de madrugada, entre as 3h e as 4h da manhã, quando os computadores deixaram de funcionar. Naquele momento, ninguém estranhou. Poderia ser apenas mais uma comum falha de ligação – como já acontecera. Mas não era. Ao nível central, no servidor – o sistema de computação centralizado que fornece serviços à rede de computadores do hospital –, surgiu uma mensagem em inglês que não deixava dúvidas: “A vossa rede foi atacada e todos os dados codificados. Dados pessoais, relatórios financeiros e documentos importantes estão prontos a ser divulgados. Para descodificar todos os dados e evitar que os ficheiros sejam divulgados, terão de comprar o nosso software de descodificação. […] Não falem com a polícia nem com o FBI. Eles não querem saber do vosso negócio. Simplesmente evitarão que vocês paguem e como resultado perderão tudo. Não contratem uma empresa de recuperação de dados, eles não conseguirão decifrar a nossa chave. Não rejeitem a compra, os dados serão divulgados.” Duas semanas depois do ataque informático ao Hospital Garcia de Orta, em Almada, que aconteceu a 26 de abril, a mensagem permanece visível.

Só de manhã é que o pessoal hospitalar teve conhecimento do que realmente acontecera – através de um email enviado pelo Conselho de Administração. Mas aqueles primeiros momentos de madrugada foram logo complicados. Razão: perdera-se toda a informação sobre os doentes. “Foi preciso refazer tudo: a história clínica, pedir análises. Também deixámos de ter os contactos dos familiares porque estavam no sistema”, conta um enfermeiro das Urgências.

Há um plano de contingência para este tipo de situações, em que há falhas no sistema informático, mas está desenhado para um teto de 24 horas – não para semanas, ou meses. De acordo com uma circular enviada aos funcionários, na segunda, 2 de maio – a que a SÁBADO teve acesso –, a unidade ainda não consegue dizer quando será totalmente reposta a normalidade. “Estimativas oficiosas falam em mais dois meses”, conta um médico da instituição.

MENSAGEM ENVIADA PELOS ATACANTES AMEAÇA DIVULGAR PUBLICAMENTE OS DADOS CODIFICADOS

Um dos primeiros e mais visíveis embates foi nas Urgências. Aquele que é o único Hospital Central da Margem Sul do Tejo teve de deixar de receber doentes transportados pelo CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes). Durante a primeira semana houve mesmo uma profissional de saúde à porta. “A diretora clínica das Urgências esteve praticamente sempre à entrada da urgência a fazer uma primeira triagem antes da triagem. Casos não urgentes eram encaminhados para o centro de saúde”, conta um enfermeiro do serviço.

Mas esse foi apenas um de muitos problemas que foi preciso enfrentar. Outro foi ter-se perdido o histórico dos doentes. “Eu cheguei a trabalhar antes de as coisas estarem informatizadas, mas na altura tínhamos tudo em papel, no arquivo – que era uma coisa gigante com pastas até ao teto e cheirava a mofo. Todos os dias traziam para o serviço os processos em carrinhos de supermercado”, relembra um médico do Garcia de Orta.

“O que é que diz aqui?”

O hospital teve de voltar a usar o papel para fazer tudo. Por exemplo, para registar os sinais vitais dos doentes – e, sem computadores, não há histórico da evolução e é mais difícil avaliar o que está a acontecer –, e para pedir análises e exames. “Temos um assistente operacional que leva as requisições à mão aos serviços e que, de hora a hora ou de duas em duas horas, passa pelo laboratório para trazer os resultados”, detalha um enfermeiro das Urgências. Já se for preciso ver um raio-X, o médico

HÁ UM ASSISTENTE OPERACIONAL QUE VAI PESSOALMENTE LEVAR E BUSCAR ANÁLISES AO LABORATÓRIO

tem de se deslocar ao serviço de Radiologia para ver o exame – não há alternativa.

O tempo despendido em todo este processo provoca outros constrangimentos. “No passado domingo, dia 8, as análises de um doente tiveram de ser pedidas três vezes ao laboratório, porque por três vezes se extraviaram”, conta um enfermeiro. Também deixaram de se detetar rapidamente infeções, como a Covid-19 e outras doenças altamente contagiosas. “Tínhamos um sistema de alerta centralizado, se houvesse um resultado positivo o chefe de equipa recebia no telemóvel e o doente era logo isolado. Agora é preciso que os resultados cheguem fisicamente”, diz o mesmo profissional de saúde. Análises que antes ficavam prontas em duas horas, chegam a demorar seis ou mais.

Outra contingência do papel é a caligrafia, que nem sempre é percetível e que dá azo a que existam erros, assumem vários profissionais de saúde da instituição. Nas últimas duas semanas tornou-se quase rotina para as equipas de enfermagem confirmarem junto dos médicos prescrições e até nomes dos doentes. “São pequenas coisas que, todas juntas, geram o caos”, diz um enfermeiro do Hospital Garcia de Orta.

Ao fim de 16 dias, já há sistema informático nas Urgências do hospital – o que permitiu, entre outras coisas, deixar de usar os cestos onde as fichas dos doentes estavam organizadas por cores, segundo a prioridade. Mas a maioria dos procedimentos continuam a ser feitos à mão. “Retrocedemos uns 15 anos em termos de práticas hospitalares”, diz um médico da instituição. À SÁBADO, o Hospital Garcia de Orta avança que “à data de hoje, não há evidência que os dados dos utentes tenham sido comprometidos”.

Não é estranho demorar tempo a resolver o problema. “Há sistemas que podem levar meses a ser restabelecidos”, diz à SÁBADO Nélson Escravana. E como é muito difícil, senão impossível, recuperar os dados sem acesso à chave, a solução é mesmo “formatar e instalar de novo”, diz o diretor de Cibersegurança do INOV INESC Inovação. ●

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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