Cofina

NUNO ROGEIRO

Quando se jurava que ia declarar guerra ao universo, mobilizar todos os maiores de 18 anos e prometer a destruição atómica (que salvaria os bons e puniria os perversos), Putin “desdramatizou”, como agora se diz.

Como referi no último Leste Oeste, um diplomata russo fiável dizia-me, à boca da parada da Vitória, que não seria de esperar nada do que se dizia nos “mentideros”. A não ser o reconhecimento, “pela presidência da Rússia, das novas realidades”.

Que realidades?

Isso ficou claro no curto discurso presidencial.

Prédica curta face a um desfile, em termos de equipamento, também mais esquálido do que o costume.

Isto, se descontarmos a presença dos mísseis nucleares, se reconhecermos a chamada “de militares a combater no Donbass”, e se tivermos em conta que a parada aérea foi “cancelada por motivos técnicos”. Segundo uns devido à meteorologia, de acordo com outros pela necessidade de empenhar toda a aviação algures.

O Presidente russo, que não se mostrou especialmente enfermo, apesar de ter ganho peso, definiu o novo mundo.

Começou por tentar quadrar o círculo: passou da vitória sobre o Terceiro Reich para o combate no Donbass (que já não chamou “Operação Militar Especial”), associando as duas campanhas, os dois contingentes de veteranos, as duas Rússias.

Isto foi o fundamental: para Putin, a Rússia atual é a continuação da soviética, e não a esquece nem a renega. Limita-se a dizer que é “diferente”. E que a “Nova Rússia” é a pátria dos valores tradicionais, face à “degenerescência de costumes” no Ocidente.

Outra “nova realidade” é territorial: o PR russo declara que, na Ucrânia, as forças russas lutam pelo “povo e pela Pátria”.

Sendo assim, o próximo reconhecimento e integração de novas parcelas na federação russa parece a continuação lógica e prática da anexação da Crimeia, em 2014.

Só que, sem Slovyansk (100 mil habitantes), Kramatorsk (150 mil), Bakhmut (70 mil), Severedonetsk (100 mil) e Lysyshansk (90 mil), e dezenas de pequenas cidades e vilas, o Donbass administrativo não está inteiramente tomado.

E essa era a intenção “mínima” declarada desta operação, só compensada pelo esmagamento de Mariupol, embora com a pedra no sapato da resistência da fortaleza de Azovstal. Que continuava, humilhantemente para o Kremlin, à altura da parada da Vitória.

Ainda na dimensão física, há uma dimensão não prevista inicialmente: a língua de litoral que liga o Donbass à Crimeia prolonga-se para ocidente. Mas só até Kherson. Essenciais para impedir essa expansão até à Transnístria estão Mykolaiv, Ochakov, Odessa e Izmail, ou Zatoka, guardiã do estuário do Dniepr, que permanecem livres.

As “novas realidades” incluem ainda o sacrifício imposto ao povo russo. Putin não o disse em tons mais sombrios, mas lembrou que todas as famílias sentem esse peso.

Ainda “nova”, a definição de inimigo: o “terrorismo”, incarnado na aliança entre “neonazis” e os EUA. A única ressalva neste maléfico elo seria o conjunto de “veteranos americanos, que queriam vir, mas foram boicotados”. Pode parecer bizarro, mas está no discurso escrito.

“Nova” também a redefinição de “solidariedade internacionalista”: agora já não do campo socialista, mas de todas as “nações” e “repúblicas” da Federação.

“Nova”, por fim, a estratégia: no Donbass como algures, a Rússia luta “pelo futuro e pela memória”. E fá-lo para “impedir uma guerra igual” à que terminou em 1945. E tem de o fazer porque “o Ocidente não ouviu” Moscovo, “forçando a Rússia a agir”.

Esta guerra fez Putin detalhar os nomes de terras ucranianas onde corre o sangue, a começar por Izyum, como antes os imperadores abençoavam os militares tombados nas colónias.

Mesmo sem declaração de escalada, ou anúncio de tragédia maior, este novo mundo faz-se sobre a morte de pelo menos 35 mil combatentes russos e ucranianos, segundo as observações independentes.

Apropriadamente, Olaf Scholz diz que isso sucede porque Putin coloca a “vingança ideológica” acima do bem-estar do seu povo. ●

Sumário

pt-pt

2022-05-12T07:00:00.0000000Z

2022-05-12T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282471417453874

Cofina