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Ucrânia Os campos de filtragem russos

Os refugiados são forçados a passar pelo sistema que os russos usaram após a II Guerra Mundial e na Chechénia: são “filtrados”. O destino de quem não passa é uma incógnita.

Por Maria Henrique Espada

Zaporizhia, maio de 2022: Alisa tem 4 anos e chegou num dos autocarros de evacuação de Mariupol. Vinha sozinha. A mãe, uma médica do exército, Viktoria Obidina, foi também retirada de Azovstal, mas não chegou com ela. O caso de Alisa tem mobilizado as redes sociais na Ucrânia. A mãe, em paradeiro desconhecido, é dada como estando provavelmente num “campo de filtragem”. O caso está longe de ser o primeiro. Desde março que foram surgindo primeiro apenas rumores, alguns, poucos vídeos e finalmente inúmeros testemunhos de quem passou por esses campos.

Chechénia, setembro de 2000: um relatório de 99 páginas da Human Rights Watch intitulado “Bem-vindos ao Inferno” denuncia os “campos de filtragem” russos na Chechénia, com casos de execuções sumárias e prática sistemática de “tortura, espancamento e violações ocasionais”. Não era novidade: o mesmo já acontecera na primeira guerra na Chechénia (1994-1996). A Amnistia Internacional relatou casos de tortura e violação de crianças. Cerca de 200 mil chechenos terão passado pelo sistema.

Vários países europeus sob domínio soviético, fevereiro de 1945: a NKVD (antecessora do mais conhecido KGB), pela ordem 00100 de dia 20, renomeia os seus campos, que já existiam desde 1941, para “de verificação e filtração (fil’tratsiia)” – é daí que vem o nome. Todos os soldados do Exército Vermelho que tivessem sido expostos à realidade do mundo ocidental ou ex-prisioneiros de guerra eram filtrados antes de poderem voltar à vida civil ou serem reincorporados. Terão sido 4 milhões. Quem não passava a filtragem, ou seja, quem não exibia adesão ao ideário soviético, acabava no Gulag.

A incógnita do destino seguinte

Na Ucrânia, a ocorrência de abusos parece clara, o destino de quem “chumba” no sistema é menos evidente. No início de maio, Maria Vdovychenko, refugiada ucraniana de 17 anos, testemunhou na primeira pessoa o que ouvira num posto de filtragem à saída de Mariupol: antes de ser verificada, ouviu uma conversa entre soldados russos. “O que é que

fizeste com os que não passaram na filtragem?” O outro respondeu: “Matei 10 e parei de contar. Não interessa.”

O sistema montado pelos russos parece obedecer a um mesmo padrão, de acordo com os relatos de quem “passou” no exame e a quem foi, apesar de tudo, permitido regressar a território ucraniano.

Bezimenne, um dos campos perto de Mariupol do qual existem imagens de satélite, consiste numa série de tendas azuis, em cujos acessos se acumulam veículos numa longa fila, mas as autoridades locais indicam que haverá quatro na região. E outros em território russo. Dmitriy – o nome fictício que lhe deu a Deutsche Welle –, passou por lá e conseguiu chegar à Polónia, e resumiu o processo à rádio alemã: “Havia três fao ses. Na primeira tenda um soldado pediu para me despir e ficar de roupa interior. Procurou por tatuagens e armas. Depois tirou-me o telefone e viu os meus contactos e fotos. (...) Perguntou-me ‘o que achas da política russa e ucraniana’? Na segunda tenda, tiraram-me o telefone de novo, as impressões digitais e fotografias.” Na terceira tenda fizeram-no assinar uma declaração sobre um artigo da constituição da autodenominada República Popular do Donetsk e voltaram a interrogá-lo sobre se tinha conhecimentos no exército ucraniano e sobre a atitude face à Rússia. Assumiu que tentou dar “as respostas certas”. Muitos ucranianos “limpam” contactos e fotos eventualmente comprometedoras. A “Dmitriy” deram-lhe um papel com

ALINA TEM 4 ANOS E CHEGOU SOZINHA DE MARIUPOL. A MÃE TERÁ FICADO RETIDA NUM DOS CAMPOS

qual poderia ficar no Donetsk ou seguir para a Rússia. Em geral, os testemunhos coincidem: buscas corporais e aos telemóveis, interrogatório, ameaças (“vais receber a cabeça do teu marido numa caixa”; “se gostares desta aproveita, mas vai haver outras mais à frente”), fotos e retirada dos documentos de identificação ucranianos. Isto, quando corre bem. Estima-se que quem vá para a Rússia esteja a ser colocado em campos precários ou “realojado” em regiões remotas (ver caixa).

A prática viola as convenções internacionais sobre tratamento a populações civis, não só pela metodologia abusiva, mas também porque a deportação forçada para o território inimigo é proibida pelo direito internacional. ●

Sumário

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