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A guerra e a impunidade

Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

A guerra relativiza todos os problemas de uma vida ou de um país. Por muito que as opiniões públicas europeias vão dando sinais de abrandamento no protesto contra a guerra, e a portuguesa em particular, ela permanece como o maior desafio das nossas vidas. Para lá do horror que está a produzir na Ucrânia, dos milhares de pessoas mortas, para lá da violação massiva dos direitos humanos, do esmagamento de um povo e do direito internacional, para lá de toda essa sinistra pegada, ela vai deixar marcas profundas na economia mundial e construir uma nova ordem geopolítica. Ela representa, não tenhamos ilusões, um marco irreversível nas nossas vidas. A guerra, porém, não deve servir como álibi para a instalação de um sonambulismo social e político que tudo abafa. Não deve ser a almofada que tudo amortece, em particular todos os problemas que já tínhamos antes da guerra ou que surgiram depois de eclodir.

A agenda fora da guerra, ou indiretamente relacionada com ela, é imensa.

É necessário, desde logo, discutir a hipocrisia política do PS e do Governo na questão dos refugiados ucranianos, recebidos por um casal russo pró-Putin agenciado pela câmara de Setúbal.

A autarquia cometeu um erro imperdoável e o seu presidente mostrou uma escassa noção dos seus deveres democráticos. Mas o Governo e o PS dificilmente se podem colocar fora desta discussão, sobretudo depois do escândalo da câmara de Lisboa e do inconsequente “acompanhamento” do SIS em relação ao casal russo. De resto, seria bom, a este propósito, que se percebesse porque é que, durante anos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros foi uma espécie de recreio para a pirataria informática russa, com demasiados indícios a exigirem uma investigação criminal que nunca aconteceu por impulso governamental. É também indispensável reverter a declaração de inconstitucionalidade da chamada lei dos metadados. O Tribunal Constitucional, que já tinha dado uma machadada na investigação e punição dos crimes de corrupção com o acórdão 90/2019, que pulverizou a forma de contar as prescrições, veio agora criar um verdadeiro pandemónio com um novo acórdão, que vai destruir milhares de processos de 2008 para a frente. Leu bem: de 2008 para a frente, quase uma década e meia, vai ser possível, com esta lei, pôr em causa tudo o que seja prova admitida e validada, em todo o tipo de processos, dos crimes de sangue aos de colarinho branco, relacionada com dados de tráfego e localização nas comunicações.

Qualquer email, telefonema, faturação detalhada, servidor de Internet, serão suficientes para suscitar nulidades de prova em todo o tipo de crime. Isto é uma dupla insanidade: para lá de desfazer o equilíbrio necessário na ponderação entre a proteção de direitos fundamentais de reserva da vida privada e outro, não menos fundamental, que é o direito à segurança individual e coletiva, o acórdão admite uma insuportável retroatividade que pode materializar-se num alarme social de consequências imprevisíveis. Para que todos percebam o alcance do que está em causa, com este acórdão podem ser libertados autores de crimes de rapto, homicídios muitíssimo graves, como é o do caso do empresário de Braga, cujo corpo foi dissolvido em ácido, ao jeito da máfia siciliana. O caos que este acórdão do TC vai criar junta-se, afinal, ao da famosa lei, pomposamente chamada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que já está a destruir o que resta dos tribunais. Na parte em que alargou os impedimentos dos juízes e noutras, como a da responsabilidade penal das pessoas coletivas, a dita Estratégia Nacional comporta erros legislativos grosseiros, que aumentam a impunidade e repetem um velho padrão de opacidade. Ou seja, vivemos há demasiado tempo num paradoxo insustentável. Quanto mais se legisla, menos claros e eficazes são os instrumentos e os objetivos eleitos. Menos segurança jurídica existe, menor e pior Estado, mais injustiça social inquina a vida coletiva. Quando demasiada coisa falha é indispensável ouvir a prolixa palavra presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa. E em algumas destas matérias, que consolidam uma cultura de impunidade, que se veja, isso não está a acontecer. ●

Opinião

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2022-05-12T07:00:00.0000000Z

2022-05-12T07:00:00.0000000Z

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