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SÓCRATES “ALDRABOU-NOS”, DISSE COSTA, MAS POUCOS MAIS O ASSUMEM

Sete anos e meio depois de o ex-primeiro-ministro ter sido detido, o tema ainda é tabu para muitos socialistas. Foi “aldrabado”? A maior parte não sabe ou não responde

Por Margarida Davim

ANA GOMES GOSTAVA DE VER O PS A FAZER UM CONGRESSO EXTRAORDINÁRIO PARA ANALISAR O CASO DE SÓCRATES

Foi a pergunta que fizemos a dezenas de socialistas, depois de o próprio António Costa ter assumido: “Sócrates aldrabou-nos” – no plural, ao PS. Fê-lo na biografia de Mário Soares, de Joaquim Vieira, que a SÁBADO distribuiu. Entre as respostas socialistas há sins, nãos e ainda um gigantesco tabu.

José Sócrates continua a ser um tema incómodo para o PS. São poucos os socialistas que têm interesse em revisitar a relação entre o partido e o ex-secretário-geral, mesmo depois de António Costa ter concluído que Sócrates “aldrabou” os seus apoiantes. A SÁBADO falou com militantes e dirigentes para perceber se também se sentiram “aldrabados” pelo antigo líder. Foram muitos os que não quiseram comentar o assunto, mas há também vozes que insistem na necessidade de uma autocrítica que, acreditam, o partido nunca chegou a fazer.

Tristeza, vergonha e desilusão

“Não usaria a palavra aldrabado. Diria tristemente surpreendido”, reage o eurodeputado Carlos Zorrinho, falando sobre o que se veio a saber sobre o estilo de vida do antigo primeiro-ministro, com quem colaborou muito de perto, sem durante esse tempo ter tido qualquer indício de que poderia haver comportamentos menos corretos. “Enquanto trabalhei com Sócrates em nenhum momento me senti aldrabado e sobretudo pressionado para mudar alguma decisão ou fazer alguma coisa de diferente”, frisa, lembrando que o caso “agora é uma questão de Justiça”.

O deputado Carlos Pereira também vê agora em Sócrates “um lado negro que desilude muito”

Velhacaria é como José Sócrates vê as declarações de António Costa. “Nunca menti a ninguém”, garantiu o ex-primeiro-ministro

quem lhe reconheceu um trabalho “notável do ponto de vista das reformas” enquanto governante.

“O sentimento das pessoas é, no geral, de desilusão. É perfeitamente natural. A situação não está totalmente esclarecida. Há um conjunto de matérias que desiludiram os socialistas e criaram um sentimento de desconforto sobre as evidências que hoje temos em cima da mesa”, descreve Carlos Pereira, para quem a revelação sobre a forma como Sócrates se financiava com recurso a empréstimos de um amigo “representa uma forte machadada em princípios como a confiança e a honestidade”. O deputado fala mesmo em “murro no estômago” para descrever a forma como os casos em torno de José Sócrates abalaram o partido, mas acredita que António Costa tem sabido “dar o passo em frente” e conduzir o partido para longe dessas suspeitas. “[O caso] abala. Mas o PS mostrou que é mais forte do que isso e que tem princípios sólidos.”

O líder da JS, Miguel Costa Matos, considera “normal algum sentimento de revolta” entre quem apoiou José Sócrates. “É natural que tenhamos sentimentos fortes sobre o que tem sido esse processo”, diz sem hesitar “subscrever” as palavras de António Costa sobre a conclusão de que Sócrates “aldrabou” o partido que liderou. De resto, Costa Matos acha que “é já um sinal de maturidade democrática ter sido possível fazer essa investigação” a um ex-primeiro-ministro e sublinha a importância de esperar pelas conclusões da Justiça.

Outro deputado, André Pinotes Batista, diz mesmo que Costa se limitou a dizer em voz alta algo que há muito se comentava em surdina no partido. “É mais do que evidente que as afirmações do secretário-geral do PS representam o nosso sentimento generalizado há muito tempo”, comenta o socialista.

Álvaro Beleza prefere falar em “vergonha” do que assumir-se aldrabado. “Senti vergonha.” Esse sentimento, sublinha, não lhe veio com a Operação Marquês, mas com as notícias sobre a forma como José Sócrates teria concluído o curso com um teste feito a um domingo. “Num país nórdico tinha-se demitido. Quem governa tem de ser exemplar”, defende. “O brilhantismo político não desculpa o comportamento ético. Não vale tudo.” Apesar disso, Beleza não se sente enganado por Sócrates. “Não fui enganado. Não sou amigo dele, nunca fui próximo dele.” E o que espera é que o caso “sirva de lição” ao PS. “Temos de aprender com os erros.”

Que “erros” levaram José Sócrates à liderança do PS é algo que Ana Gomes gostava de ver esclarecido. Para a ex-eurodeputada, ainda faz sentido agora “fazer um con

gresso ou uma comissão política que analise e junte todas as peças e tomar medidas para que isto não volte a acontecer no PS”. Na sua opinião, o partido não fez ainda a autocrítica que devia e a forma como António Costa se demarcou de José Sócrates não chega.

A autocrítica por fazer

“Passei a vida a dizer que o PS tinha de fazer um ato de contrição. Para mim era claro que tínhamos sido instrumentalizados por um mentiroso. A partir do momento em que ficou claro que o primeiro-ministro vivia à conta de um amigo, através de empréstimos em dinheiro vivo, era óbvio que o PS tinha sido instrumentalizado. Dizer que é um aldrabão não chega. Não fizemos nada. Ficamos à mercê de outro aldrabão”, argumenta Ana Gomes, que não se considera pessoalmente “aldrabada” por alguém de quem nunca foi próxima.

“Acho que fui uma vez almoçar com ele”, recorda, sublinhando as “divergências políticas” que sempre a separaram de Sócrates e recordando “um telefonema irado” que recebeu quando num espaço de comentário na SIC exigiu esclarecimentos sobre escutas que indiciavam que Paulo Portas podia estar “a trabalhar com Sócrates” para conseguir que o seu então recém-nomeado ministro da Administração Interna, Rui Pereira, fosse nomeado procurador-geral da República. “No fundo aquilo mostrava uma troca de favores”, nota, lembrando que as declarações que fez lhe valeram uma chamada de Sócrates que acabou aos gritos. “No dia seguinte tive um telefonema do Sócrates aos berros”, conta.

Ricardo Gonçalves que, como deputado, partilhou a bancada com José Sócrates, também diz que falta “fazer um debate profundo” sobre a liderança de José Sócrates. E estranha que durante muito tempo ninguém tenha posto em causa os “sinais de riqueza muito notórios” que Sócrates exibia.

“Já como deputado, ia-se vestir a Nova Iorque, vestia-se do melhor, vivia numa casa que valia muito

Injustiça atacou Ana Catarina Mendes quando em 2021 Sócrates se disse alvo de uma “canalhice” de Costa e Fernando Medina

AS AFIRMAÇÕES DE COSTA “REPRESENTAM O NOSSO SENTIMENTO GENERALIZADO”, DIZ ANDRÉ PINOTES BATISTA

dinheiro. Tudo isso não era compatível com o salário de deputado. Isso toda a gente via”, diz, descrevendo como “uma história muito rebuscada” a tese de que tudo isso era sustentado pela mãe graças a uma grande herança do avô.

Durante muito tempo, Ricardo Gonçalves fez parte de uma minoria que punha Sócrates em causa. “Politicamente, não havia grandes críticas. Ninguém perguntava coisa nenhuma. Toda a gente achava que estava tudo bem.”

Entre os socialistas com quem a SÁBADO falou que preferiram não ser identificados há quem admita ter caído num logro. “Eu acreditei naquilo até uma determinada altura, até as coisas entrarem pelos olhos dentro”, diz um deputado, que descreve a perplexidade com o nível de vida do governante que como secretário de Estado “já tinha um carro descapotável”.

Ascenso Simões, que foi sempre muito próximo de Sócrates e foi testemunha da fortuna do avô e da herança que deixou, prefere agora não se pronunciar sobre as palavras de António Costa. O mesmo acontece com Renato Sampaio. Eduardo Cabrita e Ana Paulo Vitorino, outros socialistas próximos de Sócrates, também preferiram não fazer qualquer declaração. “Não me vou pronunciar sobre o assunto”, limitou-se a responder Edite Estrela, que chegou a ser madrinha de casamento de Sócrates.

Mas entre quem nunca teve proximidade política ou pessoal com o ex-primeiro-ministro também há

MUITOS SOCIALISTAS AINDA PREFEREM NÃO COMENTAR AS ACUSAÇÕES FEITAS A JOSÉ SÓCRATES

quem não se queira pronunciar.

É o caso de Sérgio Sousa Pinto, que recusou qualquer comentário, ou de Helena Roseta, que até saiu do PS depois de o ter confrontado num Congresso em 2006.

E há quem não queira voltar ao assunto, como Pedro Delgado Alves, que não quis falar à SÁBADO, mas que há um ano defendeu numa reunião da bancada parlamentar a necessidade de o PS fazer uma autocrítica em relação a José Sócrates.

“Eu já dei para esse filme. Não tenho nenhum comentário a fazer. É entre mim e ele. Agora o que é preciso é que isto seja resolvido e haja um desfecho no processo”, diz Manuel Alegre, que em 2018 falava na “captura do Estado por outros interesses quando Sócrates foi primeiro-ministro”.

João Soares também deu por

JOÃO SOARES DIZ QUE NUNCA SE SENTIU “ALDRABADO” NEM POR SÓCRATES NEM POR ANTÓNIO COSTA

EM 2018, CARLOS CÉSAR E JOÃO GALAMBA ASSUMIAM TER “VERGONHA” DO PROCESSO DE SÓCRATES Canalhice foi como Sócrates se referiu às palavras de Fernando Medina, que, há um ano, disse que o seu caso “corrói a democracia”

arrumada a questão com uma publicação que fez no Facebook sobre as declarações de Costa, na qual lamentava a “querela pública” entre o atual e o ex-secretário-geral do PS. “Como costuma dizer o nosso Herman: ‘Não havia necessidade!’ Menos ainda de envolver o nome do meu pai que já cá não está. Acrescento pequena nota pessoal: nunca me senti aldrabado por nenhuma das pessoas referidas”, escreveu Soares.

Porfírio Silva, deputado e membro do Secretariado Nacional do PS, também preferiu não regressar ao assunto que comentou há um ano no seu blogue. Na altura, admitia que “Sócrates tem razões de queixa do sistema judicial”, mas considerava “profundamente errado pretender que isso é tudo o que há a dizer sobre a matéria” e defendia a legitimidade e a importância de o PS ter um “juízo ético” independente do juízo penal do caso.

Outros membros do Secretariado Nacional do PS, como Eduardo Vítor Rodrigues e Isabel Moreira também não quiseram fazer comentários. E, na cúpula do partido, nem o presidente Carlos César nem o secretário-geral adjunto João Torres se quiseram pronunciar.

Como o PS se descolou do caso

Ainda assim, desde 2014 que o PS tem descolado progressivamente de José Sócrates. António Costa deu o mote quando, depois de uma visita ao ex-primeiro-ministro no Estabelecimento Prisional de Évora, disse que Sócrates estava a lutar “por aquilo que acredita ser a sua verdade”.

Em 2018, Carlos César admitiu sentir-se “envergonhado” pelas acusações feitas a José Sócrates e João Galamba disse sentir o mesmo. “Acho que é o sentimento de qualquer socialista, quando vê ex-dirigentes, no caso um ex-primeiro-ministro e secretário-geral do PS acusado de corrupção e branqueamento de capitais. Obviamente, envergonha qualquer socialista, sobretudo se as matérias de que é acusado vierem a confirmar-se”, afirmou Galamba. ●

Sumário

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