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Vincent Bevins EUA estiveram por trás da morte de 1 milhão de pessoas

Fez mais de 100 entrevistas para relatar a caça aos comunistas, que matou 1 milhão de pessoas durante a Guerra Fria. O jornalista alerta que esta ideologia ainda existe e que Bolsonaro é um desses exemplos.

Por Vanda Marques

Ainda hoje, na Indonésia, é crime falar sobre o que aconteceu em 1965. Em poucos meses, cerca de 1 milhão de pessoas foram mortas. Em comum: eram comunistas ou simpatizantes de esquerda. Estávamos em plena Guerra Fria e os países do Sul asiático e da América do Sul eram peças importantes neste xadrez, explica o jornalista norte-americano Vincent Bevins, que trabalhou na Indonésia e no Brasil como correspondente. O método foi eficaz num país que tinha cerca de 30% de população comunista. Tão eficaz que foi replicado em 22 países, e com a bênção dos EUA, defende o autor do livro O Método Jacarta – assim foi batizada a operação. Vincent revela que este ódio ainda persiste e que o Brasil é um dos exemplos.

No seu livro sugere que o discurso contra o comunismo é arma política. Bolsonaro é um exemplo?

Bolsonaro é a prova viva do tipo de ideologia que permite esta violência contra a esquerda. Antes de se tornar Presidente, apelou ao assassinato do então Presidente do Brasil, também disse que a ditadura militar devia ter matado mais pessoas. Ele representa a ressurreição da ideologia anticomunista que devia ter desaparecido em 1989. Claro que hoje as condições são diferentes, não vivemos na Guerra Fria. Há outra coisa que não podemos esquecer: quando falo com os sobreviventes da violência do Chile e da Indonésia, estas pessoas recordam que na época, nos anos 60/70, nunca imaginaram que estes massacres poderiam acontecer. Caímos neste pensamento: as coisas melhoram automaticamente.

“É má ideia fazer previsões na política brasileira. Tem sido surpreendente a forma como Lula regressou”

Começa o livro a falar do episódio quando conhece Bolsonaro em 2016. Na época imaginou que ele chegaria tão longe?

Nunca. A ideia de alguém como Bolsonaro, uma figura totalmente marginal na política brasileira até 2016, ocupar o vazio deixado pelos escândalos de 2013-16, era impensável. Ele apresenta-se com um discurso

violento, chocante, e acedeu à ideia que ainda existia na cabeça de algumas pessoas: a esquerda é a culpada e tem e ser esmagada.

Como descreveria Bolsonaro?

É uma figura interessante porque o seu único projeto é a destruição da esquerda. Ele pertence a uma fação das forças armadas que acreditam que a ditadura brasileira era muito mole. Só que esta visão mostrou-se insuficiente para governar um país. Ele acredita, de uma forma quase religiosa, que se destruir a esquerda, se limpar o país deste cancro, fica tudo bem. Felizmente não pode fazer tudo o que quer, porque as instituições brasileiras impedem isso, mas ele está numa má posição para governar. Quer concordemos ou não com a sua ideologia, ele tem sido mau como Presidente. Muitas pessoas que não se importavam com este discurso violento antiesquerda, que só tinham interesses económicos, estão a abandoná-lo, porque ele é mau a administrar um país tão grande como o Brasil.

Qual será o resultado das eleições presidenciais em outubro no Brasil? Lula ou Bolsonaro?

É muito má ideia fazer previsões na política brasileira. Tem sido surpreendente a forma como Lula regressou no último ano. Não apenas convenceu grande parte da população brasileira, mas também uma parte suficiente das elites conservadoras passaram a achar que ele poderia regressar. Tudo é possível.

O episódio do massacre que relata e que aconteceu na Indonésia era previsível?

Não. Até na Indonésia, estes movimentos de esquerda, o partido comunista, não estavam armados nem imaginavam algo assim. Muitos destes líderes dirigiram-se às esquadras quando foram chamados de forma voluntária... Não imaginavam o que lhes poderia acontecer. O Ocidente ganhou a Guerra Fria e pensamos que ela se travou entre Washington e Moscovo, mas percebemos que

“Os EUA influenciaram o massacre de comunistas em 22 países”

aconteceu também nos países do Hemisfério Sul. Queria mostrar como este movimento de esquerda foi esmagado.

Como foi possível massacrar 1 milhão de pessoas na Indonésia sem a opinião pública perceber?

O assassínio em massa de cerca de 1 milhão de pessoas de esquerda ou de pessoas acusadas de o serem não foi a primeira solução que escolheram para resolver o problema indonésio e criar a ordem mundial capitalista, liderada pelos Estados Unidos. Primeiro, consideraram o Presidente Sukarno como um líder aceitável. Só que quando viram a Indonésia a defender a criação de uma ordem global anticolonialista, e perceberam o crescimento do partido comunista, PKI, as coisas mudaram.

Mas como é que se passa disso para a erradicação do Partido Comunista Indonésio e a deposição do Presidente Sukarno?

Começaram por criar laços com os militares e deixaram claro o que queriam e que estes seriam recompensados por o fazerem. Ao mesmo tempo, Sukarto está a tentar mediar o conflito com o partido comunista, muito popular na época. Mas em outubro de 1965, o general Suharto sobe ao poder, com o apoio dos EUA, e acusa o partido comunista de todo o tipo de coisas horríveis. É então que começa a exterminação. Milhares de pessoas foram levadas para campos e cerca de 1 milhão foram esfaqueadas e atiradas ao rio. Repara, cerca de 25 a 30% da população era do PKI e para conseguires neutralizar esta quantidade de pessoas tens de as aterrorizar. A técnica do desaparecimento foi fundamental para aterrorizar a população. Porque se perdeste um ente querido, um amigo, mas não souberes se ele está vivo ou não, isso vai paralisar-te. Em meses morreram milhares de pessoas. E as forças militares por trás desta violência foram presenteadas com o apoio dos EUA e a Indonésia foi convidada para o mundo livre.

Como conseguiram esconder isto?

O sucesso da operação implicava mentir dentro e fora do país e convencer as pessoas de que os crimes horríveis tinham sido cometidos pelos comunistas. Por exemplo, correu uma história de que o movimento feminista indonésio tinha torturado e castrado vários generais num ritual satânico. É o tipo de história que seria criado pelos melhores escritores só para assustar. E é até possível que alguns guionistas tenham ajudado na construção destas histórias, já que se sabe que a CIA trabalhou com Hollywood no início dos anos 50. A juntar a isso, até hoje é ilegal falar do massacre de 1965 na Indonésia. E não podemos esquecer que a opinião pública passa a estar preocupada com a guerra do Vietname e isso sobrepõe-se a tudo porque estavam lá soldados americanos, a partir de 1965.

Como se tem a certeza de que os EUA estavam por trás disto?

No início de setembro de 1965 não sabemos quem planeou fazer o quê, ou seja, não sabemos se este tipo de campanha de extermínio tinha sido planeada ao detalhe ou se a violência emergiu no momento. O que sabemos é que assim que Suharto chegou ao poder, os EUA reconheceram-no e ajudaram-no a espalhar a sua propaganda. Sabemos que os EUA estavam bem informados sobre a quantidade de pessoas que estavam a ser mortas, e que continuaram a influenciar os militares. Mais tarde soube-se que os EUA entregaram listas com nomes de comunistas e pessoas de esquerda aos militares indonésios.

Diz que as pessoas que sobreviveram aos massacres ficaram desiludidas com o mundo influenciado pelos EUA, mas não foi apenas o Ocidente que cometeu atrocidades. Acha que nesses países o pensamento é: se tivessem ganhado os russos o mundo seria melhor?

É absolutamente verdade que os regimes socialistas e comunistas fizeram coisas terríveis. Não vou diminuir o que fizeram. Mas o que o meu livro quer mostrar é que em países democratas e reformistas os movimentos de esquerda, que não praticavam violência, foram absolutamente destruídos. Quando o fizeram na Guatemala, no Chile, a motivação não era apenas afastar Estaline. Há uma segunda componente que é a económica. Por exemplo, existia uma grande preocupação quanto à nacionalização da indústria do petróleo na Indonésia. Ao nível macro: os EUA queriam países onde fosse possível construir uma ordem capitalista.

Este método Jacarta foi usado noutros países?

Os EUA influenciaram o massacre de comunistas em 22 países. O grau de envolvimento vai da participação ativa, à aprovação tácita até ao apoio para o massacre. A referência ao método Jacarta apareceu, por exemplo, em 1972 no Chile – país democrata e de esquerda, governado por Salvador Allende. Os grupos de direita receberam fundos dos EUA e faziam campanhas de terror, uma delas era enviar a mensagem: “Jacarta está a caminho.” Entrevistei uma das pessoas que receberam o postal e ela dizia que não acreditavam que fosse possível. Porque o ponto é este: acreditam sempre que as coisas más ficaram no passado. Temos de garantir que ficam. ●

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