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JOÃO PEDRO GEORGE

O Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

BEM, COMO ESTAVA A DIZER, a Cristina Ferreira salvou-me. Antes de a apresentadora da TVI ter descido os mesmos degraus do Ritz que eu, para fazer irrupção no cocktail da editora Contraponto, quem isto escreve desequilibrou-se, deu um trambolhão, foi cair em cima de uma mesa de apoio, deitou abaixo (com estrondo) uma série de garrafas de vinho abertas, vários copos meio cheios, bandejas de canapés (coisinhas espetadas em palitos) e taças de frutos secos e batatas fritas.

Nesse instante, fez-se um zunzum, dando depois lugar a um alvoroço espantoso, como se o aquecimento global se tivesse produzido de um momento para o outro e nos apanhasse num hotel de luxo (os famosos conseguem sempre estar no lugar certo).

Corado até à raiz dos cabelos e de joelhos trémulos, desejando que o chão se abrisse debaixo dos pés, senti-me como uma personagem de um romance do século XIX, em que a alegria da festa precede o desastre.

Mesmo admitindo que a contemplação da minha figura grotesca e desconexa constituía uma cena imperdível, toda aquela agitação pareceu-me um tanto exagerada.

No entanto, a razão de ser da tumultuosa deslocação das atenções não era “eu e a minha desastrada circunstância”. Era a altissonante directora de Entretenimento e Ficção e accionista da estação de Queluz de Baixo, que acabara de entrar na sala.

Cristina Ferreira lembrava uma superlocomotiva, um TGV alemão que reboca os jornalistas a toda a velocidade, com risco de sofrerem alguns acidentes.

Cercada de flashes e sorrindo de forma luminosa, parecia pegar fogo. Colado ao corpo, como uma segunda pele, conforme a última tendência da moda (antigamente dizia-se “o último grito da moda”), um vestido preto Dolce & Gabbana, rendilhado nos braços e no tórax, realçava-lhe os ombros pequenos e redondos.

Imune aos raios atordoantes das máquinas fotográficas, como exposta num museu, digna de admiração de todos nós, pobres mortais, Cristina Ferreira causou-me como que uma espécie de desvairamento.

Parecendo-me que a sala começava a rodopiar, questionei-me se não estaria a ser vítima da síndrome de Stendhal, o escritor francês que dizia que os indivíduos, quando expostos a certas obras de arte, ficam com o ritmo cardíaco acelerado e sentem vertigens e confusão, podendo mesmo desmaiar.

Mas não, eu não sonhava. Ali estava ela, integral, diante deste paspalhão, coincidindo comigo em tempo real e no mesmo espaço físico (é um alívio saber que ela existe em carne e osso, que não é uma realidade virtual).

Sem demonstrar o mais ligeiro sinal de surpresa pelo nosso espanto, pelo mar de caras expectantes rodeando-a com especial solicitude, Cristina Ferreira, na maior das calmas, deu alguns passos, o que impressionou fortemente todos os convidados (por muito menos vi homens arranhando-se, enlouquecidos, atirando-se ao chão e rasgando a camisa em pedaços, mostrando despudoradamente o peito e os bíceps).

Enquanto observava o milagre, entrou no meu espírito uma conjectura, uma antecipação prodigiosa do porvir: daqui a alguns anos, como vestígio da sua passagem pelo Ritz, colocarão ali uma placa comemorativa, dizendo “Cristina Ferreira jantou neste hotel” (na verdade, tal como acontece num bar de Madrid, chamado “Hemingway nunca comeu aqui”, no futuro, os sítios onde ela nunca esteve é que se tornarão conhecidos).

Suponho que este género de pensamentos – Cristina Ferreira como um fétiche que ganhará valor mítico, uma marca arqueológica do nosso tempo – não tem sentido.

Não sei. O que sei é que o seu andar musical, visto com a luz de Manet, me transportou a alguma região nostálgica, mais concretamente à Viena imperial e elegante, a Viena das valsas e dos filmes de Erich von Stroheim.

Imaginei-me a encetar uma conversa com ela, procurei no meu dicionário de frases de engate, próprias dos salões de finais do século XIX, algo que lhe despertasse o prazer de uma nova sensação.

Algo como “A poesia serve-se de si

para se manifestar aos nossos olhos”, “O seu rosto assemelha-se a uma flor acabada de desabrochar”, “O seu cabelo é um raio de sol”. Ou, como Duke Ellington (para os leitores mais distraídos, trata-se do pianista e compositor de jazz norte-americano, não do Duke of Wellington, o marechal e político britânico que foi duas vezes primeiro-ministro do Reino Unido), perguntar-lhe-ia:

– “Cristina Ferreira, já ouviu falar das normas internas do Ritz?”

– “As normas do Ritz?”, repetiria ela, olhando-me com surpresa.

– “Sim, Cristina, há uma norma segundo a qual nenhuma senhora está autorizada a superar um certo nível de beleza, e a Cristina está a ultrapassar esse limite. Ainda a vão multar!”

Criei, seguidamente, um mundo de fantasia em que eu, o empregado da livraria do filme Nothing Hill (e ela a Julia Roberts cansada de esperar pelo príncipe que deveria aparecer num corcel branco, para a arrebatar nos seus braços), expunha teses especializadas sobre a marcha do capitalismo e da globalização, ao mesmo tempo que lhe explicava os desgostos causados pela solidão das materialidades e da fama (os grandes sábios do passado sabiam que a solidão se encontra, muitas vezes, debaixo dos holofotes ou das luzes do êxito).

Inútil será mencionar que não fiz nada disto. Mas fez-me sentir confiante e até me atrevi a dizer-lhe, inclinando-me com cortesia: “Ainda não tivemos o prazer de sermos formalmente apresentados. É um prazer conhecê-la finalmente.” (Falar com Cristina Ferreira: todos querem, mas muito poucos conseguem. Eu consegui!)

Olhando-me por um brevíssimo instante, como se eu fosse um insecto e me pudesse esmagar a qualquer momento, disse-me apenas:

– “Como vai?”

– “Vou bem”, respondi.

Mas a ela não lhe interessava porque é que eu ia bem, já que nem sequer chegou a ouvir a resposta, muito menos a frase que me limitei a esboçar – “É uma pena que a sua magnífica inteligência seja aproveitada em programas como...” –, pois desviou os olhos e passou de imediato à convidada seguinte (Inês Franco, a única mortal que pode permitir-se a liberdade de pentear minuciosamente os cabelos de Cristina Ferreira).

Enquanto fazia tentativas para me conservar direito em cima dos sapatos e tentava abotoar o blazer, procurei perceber, comigo próprio, as causas daquela frieza: “A sua existência tem um ritmo mais apressado que o nosso e a minha presença era uma barragem contra a velocidade da vida dela? Seria tímida? Seria destes tempos tão cínicos, pouco propícios aos impulsos espontâneos de homens sensíveis e delicados como eu? Ou ter-me-ia agitado demasiado?”

Martelava eu nestas psicologias quando fui interrompido bruscamente pelo som disparatado das entranhas do meu telemóvel. Era um SMS do Rui Couceiro, o editor da Contraponto, chamando a atenção para o meu aspecto de galã de filme mexicano e informando-me que as minhas calças precisavam de um ferro de engomar e que o casaco largara um botão.

Acto contínuo, um empregado arrastou-me, um pouco assarapantando, para o salão nobre, onde ia começar o jantar. (Conclui na próxima semana). ●

Sumário

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2022-01-20T08:00:00.0000000Z

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