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COMO A BASE ALEMÃ EM BEJA FINANCIOU A GUERRA NO ULTRAMAR

Por Paulo Barriga

O acordo secreto do Estado Novo de Salazar: deixou os alemães implantarem um aeródromo em Beja e aproveitou as contrapartidas para financiar as frentes da Guerra Colonial

KONRAD ADENAUER VIVIA ANGUSTIADO COM A POSSIBILIDADE DE UM ATAQUE DA UNIÃO SOVIÉTICA

Com receio de uma invasão da URSS, a República Federal Alemã assinou com Portugal uma série de acordos secretos para criar, em Beja, uma base de retaguarda para as forças alemãs. Graças a isso, Salazar conseguiu suportar o esforço de guerra em três frentes no ultramar.

Madrugada de 1 de fevereiro de 1985. O País acordava por fim para uma realidade que lhe escapava há quase um quarto de século. As FP-25 de Abril faziam detonar em Beja, pouco depois das 2h da manhã, oito engenhos explosivos. Não houve vítimas, nesta que foi uma das derradeiras ações do movimento terrorista de extrema-esquerda. Pelo que a estranheza da notícia não consistia no próprio ato violento, em si, mas antes no alvo. Um bairro residencial da Luftwaffe, a força aérea da República Federal Alemã (RFA), no coração de um Alentejo também ele a lamber as feridas da sua “guerra” particular: a Reforma Agrária.

O atentado foi uma “medida de pressão” para acelerar o “desmantelamento” das estruturas militares alemãs em Portugal, revelou o repórter da RTP ao País, no rescaldo dos acontecimentos. As FP-25, cuja cartilha anti-imperialista se baseava precisamente na de um grupo terrorista fundado em 1970 na Alemanha Ocidental, o Baader-Meinhof, atuava também agora contra os interesses do “capitalismo” germânico. No Portugal profundo. E era aí que residia a grande estranheza do atentado. Alemães, em Beja? Porquê? Para o compreender é necessário recuar várias décadas, até à assinatura de um dos mais secretos acordos firmados no antigo regime, entre o governo de Salazar e o da República Federal Alemã.

Cicatriz da Guerra Fria

No fim da década de 50, o período mais escaldante da Guerra Fria, a RFA estava na linha da frente de um conflito com consequências imprevisíveis. O governo germânico, liderado por Konrad Adenauer, “vivia angustiado com a possibilidade de um ataque da União Soviética e procurava um refúgio para as suas tropas a partir do qual pudesse organizar, com a ajuda da NATO, uma contraofensiva para recuperar o seu território ao Exército Vermelho”, revela à SÁBADO o investigador asturiano Antonio Muñoz Sánchez. “Sentimento” que ficou bem vincado na segunda reunião da “secreta” Comissão Mista Luso-Alemã, que se realizou em Bona em finais de março de 1960 e onde se abordou, inclusivamente, a criação em Portugal de nove hospitais de reserva para acolher milhares de militares das Bundeswehr, as forças armadas alemãs.

Para este especialista nas relações entre a Alemanha Ocidental e os estados ibéricos durante a Guerra Fria e autor do livro El Amigo Aleman, “a melhor solução encontrada para secar o suor frio dos alemães foi Portugal”. Ideia reforçada pelo historiador Rui Lopes, cuja tese de doutoramento na London School of Economics and Political Science versa precisamente as ligações entre a Alemanha ocidental e a ditadura portuguesa: “A escolha de Portugal para uma base de retaguarda prendeu-se, antes de mais, com uma questão geoestratégica.”

Longe da Cortina de Ferro, prossegue o historiador, “em caso de bombardeamento ou de invasão da RFA, Portugal seria o lugar mais seguro no território continental para onde retirar e preparar um contra-ataque”.

É certo que o governo de Salazar já tinha facilitado aos seus aliados na NATO, oficialmente desde 1951, a operacionalização de uma plataforma aeronáutica na ilha Terceira, nos Açores. Mas enquanto a base das Lajes “apenas” colocava o regime na primeira fila do combate ao “comunismo global” e lhe assegurava uma nem sempre correspondida “aliança” com as democracias ocidentais, a base de Beja, inscrita no espírito das consecutivas reuniões e acordos secretos luso-germânicos firmados a partir de janeiro de 1960 e em especial no “Acordo Base das Facilidades Concedidas por Portugal às Forças Armadas Federais Alemãs”, assinado a 16 de dezembro desse mesmo ano pelos ministros da defesa Botelho Moniz e Franz Josef Strauss, acabaria por se revelar “fundamental para a sobrevivência do próprio Estado Novo”, como assegura a historiadora Ana Mónica Fonseca.

A mais cara das ruínas

Em meados de 1962 começou a ser construído em Beja, com dinheiro e supervisão da RFA, mas com empreiteiros e operários portugueses, aquele que é ainda hoje o maior aeródromo da Europa e o único com atributos para ter sido posteriormente incluído no protocolo de emergência do programa espacial norte-americano Space Shuttle.

O projeto original previa duas pistas paralelas, a principal com quatro quilómetros, hangares gigantescos, bunkers e depósitos de armamento, uma fábrica de montagem de aeronaves e zonas de aquartelamento e de logística para cerca de cinco mil militares e civis alemães e para três mil portugueses.

Na época, a revista Der Spiegel apresentava-a como “a mais cara ruína” das forças armadas alemãs. Ou, como diz hoje Rui Lopes, “um verdadeiro elefante branco devido ao investimento megalómano num projeto que desde cedo se revelou obsoleto”. De acordo com um memorando do Ministério Federal da Defesa, até 1971 a RFA gastou quase 215 milhões de marcos alemães em infraestruturas militares em Portugal, dos quais 144 milhões [310 milhões de euros] em Beja.

Mas no preciso ano em que avançaram as obras daquele que tinha sido projetado para ser um dos pilares do bloco ocidental em caso de conflito com as forças do Pacto de Varsóvia, a Guerra Fria travava a fundo. Após a “crise dos mísseis de Cuba”, em outubro de 1962, os Estados Unidos da América viram-se obrigados a harmonizar com a URSS um plano de “desanuviamento”. “Perante a crescente improbabilidade de vir a ser usada como retaguarda após um eventual ataque inimigo, a base acaba por ser utilizada essencialmente para treino de pilotagem. Não só pela força aérea da RFA, mas também pelas companhias civis TAP e Lufthansa”, esclarece Rui Lopes.

Esta nova realidade, acrescenta Muñoz Sánches, “tornava em grande medida inútil o projeto da base de Beja na forma como tinha sido concebido”. De acordo com este investigador espanhol, “quando, em 1967, a base ficou operacional, a sua função

EM CASO DE INVASÃO, PORTUGAL SERIA O LUGAR MAIS SEGURO PARA RETIRAR E PREPARAR UM CONTRA-ATAQUE

estratégica estava já ultrapassada. Mas o projeto gigantesco onde se tinham investido muitos milhões de marcos não podia ser abandonado”.

O contingente militar alemão em Portugal acabaria por sofrer uma redução drástica e boa parte das megainstalações previstas no projeto inicial, como o caso da fábrica de aviões onde hoje estão seladas toneladas de placas de amianto à espera de tratamento, seriam largadas a meio da construção ou nem sequer iniciadas.

No entanto, sempre longe dos holofotes mediáticos, a Luftwaffe permaneceu em Beja até setembro de 1994, retirando-se apenas após a queda do Muro de Berlim e do desmantelamento da Cortina de Ferro, cumprindo até ao último instante o seu desígnio inicial. Michael Deckan, mecânico-inspetor de aviões, esteve destacado no Alentejo em comissão de serviço entre 1982 e 1990 e assegura que, mesmo após a unificação do país, “não havia muita gente que soubesse disto, nem dos custos que a base tinha para os contribuintes” alemães.

Mas se a presença militar germânica em Portugal passou de fundamental a residual ainda na década de 60, o mesmo não aconteceu com as contrapartidas que o governo de Salazar acabou por obter. Ana Mónica Fonseca, autora da investigação “A Força das Armas: o Apoio da República Federal da Alemanha ao Estado Novo”, é categórica: “As relações luso-alemãs foram fundamentais para a capacidade de o regime português manter a sua presença em África pela força das armas”.

O que é notório, por exemplo, na carta classificada como “secreta” que o ministro português da Defesa Nacional, Botelho Moniz, enviou ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, a 19 de fevereiro de 1969: “Com vista às operações militares que se realizam no nosso Ultramar contra o terrorismo, bastante do nosso equipamento e material de guerra tem sido adquirido da República Federal Alemã”.

Angola é nossa

Para o governo conservador alemão, que esteve no poder entre 1949 e 1969, “Salazar era uma figura grande da história europeia e o seu regime era considerado o sistema apropriado para governar Portugal, adaptado ao caráter nacional e às tradições lusitanas”, analisa Muñoz Sánchez. É colocando a tónica na teoria do “bom ditador” que a RFA promove e fortalece a máquina bélica portuguesa: “Alguém pode realmente imaginar que um país pobre como Portugal podia manter, unicamente com as suas forças, uma guerra em três territórios a milhares de quilómetros da metrópole, durante mais de uma década, sem ser derrotado? Não, a ajuda externa existiu e foi massiva!”

No fundamental, esse auxílio proveio de França e, muito em particular, da Alemanha. As ajudas provenientes da República Francesa são de justificação óbvia. Tal como Portugal, o país achava-se a braços com movimentos independentistas nas suas colónias, em especial na Indochina e na Argélia. E não foi por mero acaso que o governo português concedeu, em 1964, a fixação de uma estação de rastreio de engenhos balísticos francesa na ilha das Flores, nos Açores.

Mas o mais estranho foi o apoio prestado pela RFA, um país que ainda não tinha assento de pleno direito na Organização das Nações Unidas e que procurava, na lógica de uma diplomacia económica feroz, recrutar aliados para o “bloco ocidental” precisamente entre as novas nações africanas recém-libertadas. No entanto, e em paralelo, concedia cobertura política, financeira e militar a um Estado que teimava em resistir militarmente à descolonização: Portugal.

É facto que as primeiras reuniões e acordos secretos luso-germânicos datam de 1960, cerca de um ano antes do início dos conflitos armados no Norte de Angola. Compromissos que subordinaram o governo federal a manter as fábricas de material de guerra de Braço de Prata e a Fundição de Oeiras ocupadas com grandes encomendas de munições e de armamento destinados à Bundeswehr.

O que, na prática, revela Ana Mónica Fonseca, permitia que “as linhas de montagem destas fábricas estivessem sempre prontas a produzir, o que diminuía largamente o seu custo de manutenção para o lado português. Foi assim que Portugal conseguiu ter a produção da espingarda automática G3 e as respetivas munições a custos baixíssimos”. Num “memorial” do Secretariado-Geral da Defesa Nacional pode inclusivamente ler-se que, em 1969, a Fábrica Nacional de Braço de Prata não podia “exportar para outros países que não a Alemanha, espingardas G3 de seu fabrico, sem que para tal obtenha acordo da HECKO [empresa alemã de armamento] e autorização do Governo Alemão”.

A RFA TINHA DE MANTER AS FÁBRICAS DE MATERIAL DE GUERRA DE BRAÇO DE PRATA E A FUNDIÇÃO DE OEIRAS OCUPADAS

O APOIO GERMÂNICO PRESUMIU TAMBÉM O AUXÍLIO NA AQUISIÇÃO DE EQUIPAMENTOS, VEÍCULOS E AVIÕES

O apoio germânico ao esforço de guerra português em África presumiu também o auxílio na aquisição de equipamentos, veículos e aviões militares. Ao longo da primeira metade da década de 60, a RFA permitiu o acesso do governo português, por compra ou por empréstimo, a centenas de aviões Do-27, T-6 e Fiat G-91, entre outros, “que foram usados diretamente em África”, prossegue Mónica Fonseca, depois de adaptados para o combate ao solo. Isto, para além de três grandes navios de guerra.

Numa das inúmeras reuniões (esta a 14 de abril de 1969) entre o almirante Sousa Uva e o general Bieber, presidentes das respetivas delegações nacionais na Comissão Mista Luso-Alemã, foram “fechados” os termos de um acordo para o empréstimo pela Alemanha de 60 aviões Do-27 e de 70 aeronaves T-6. Já a 21 de agosto do mesmo ano e a propósito da compra de 15 aviões Nordatlas para a Força Aérea Portuguesa ao preço unitário de 100 mil marcos alemães [700 contos ou 215 mil euros na moeda atual], refere o representante português que “este preço é muito acessível, pois o seu valor real anda por 500.000 a 600.000 DM” [mais de 1 milhão de euros].

Até 15 de dezembro de 1960, altura em que foi aprovada a resolução 1542 da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, que denunciava as “províncias ultramarinas” portuguesas como territórios “não autónomos”, Portugal conseguiu sempre contornar e desvalorizar as decisões aprovadas por aquela organização em torno da descolonização, autointitulando-se “não colonialista”. Postura que levantou vivos protestos na ONU por parte dos chamados “países não alinhados”, em especial do eixo afro-asiático liderado pela Índia de Pandit Nehru que, passado apenas um ano, haveria de expulsar Portugal das suas possessões naquele país asiático. Mas, no entretanto, Salazar podia lançar o seu grito de guerra: “Para Angola, rapidamente e em força!” Orgulhosamente acompanhados.

A pequena Alemanha

Enquanto o império se desmoronava em África, a pequena e depauperada capital da província do Baixo Alentejo conhecia um choque civilizacional sem precedentes. Com o início da construção do complexo militar alemão, na primeira metade da década de 60, chegaram à cidade perto de mil operários. Uma “multidão” considerável para uma região que desde o início da mecanização da agricultura e do consequente êxodo rural, se encontrava em acentuado declínio demográfico (pouco mais de 15 mil habitantes em 1960). E se a presença do operariado serviu para estancar a sangria populacional, com a chegada do contingente germânico (a base foi ativada em agosto de 1967) Beja transformou-se numa “pequena Alemanha”.

Por essa data, Sebastiana Machado estava a concluir o Curso de Formação Feminina na Escola Industrial e Comercial de Beja. “Disseram-me que os alemães estavam a contratar portugueses para trabalhar na base, fui tentar a minha sorte. Mas foi aí, durante as entrevistas, que percebi o estado em que estávamos culturalmente. Nunca tinha visto tanta gente analfabeta, junta, a pedir emprego.”

Sebastiana foi contratada como telefonista para a “central de cavilhas”. “O meu primeiro ordenado foi de 1.800 escudos [635 euros aos dias de hoje]... ganhava mais do que o meu pai que era GNR e do que uma professora primária.”

Por muito que Oliveira Salazar tentasse, e com sucesso, ocultar a presença de uma base militar estrangeira em território continental (eram inclusivamente tropas portuguesas sob o estandarte nacional que controlavam a porta de armas), pouco ou nada, ao nível local, podia fazer contra a verdadeira corrida ao eldorado alemão que então se sentiu no interior alentejano. Só para os serviços comuns do comando germânico foram inicialmente contratados 230 civis portugueses. Com ordenados sempre superiores a 1.500 escudos [530 euros], o que superava em quatro ou cinco vezes os usual

mente praticados em Portugal. De salientar que em 1974, o primeiro ano em que se fez registo do salário mínimo em Portugal, segundo a PORDATA, um trabalhador rural recebia qualquer coisa como 100 escudos [16,50 euros].

Parte dos habitantes de Beja experimentava assim, ainda antes do 25 de Abril, uma verdadeira sensação de pertença ao “primeiro mundo”. O que muito incomodou a grande burguesia rural que ainda tentou, em abaixo-assinado, demover a comunidade alemã de “inflacionar” os pagamentos, em especial às “criadas de servir” que começaram a desertar em debandada das casas senhoriais. “Não deveriam ser oferecidos salários mais altos do que os praticados na região até porque estes são, entre nós, os salários justos, os que estão de acordo com o nosso nível de vida”, consta no documento.

Era a lei do poderoso e estável marco alemão a impor-se num dos territórios mais pobres e socialmente atrasados da Europa Ocidental. “Isto aqui não era nada antes de eles chegarem e, depois, tudo mudou, principalmente no comércio da cidade, nos cafés, nos restaurantes... em todo o lado”, recorda Bartolomeu Guerreiro, pintor de automóveis, um entre os milhares de civis bejenses que prestaram serviço na base ao longo dos cerca de 25 anos da presença militar alemã.

Beja, que era, por certo, o único local do continente onde se podia adquirir com a mesma naturalidade a “demonizada” Coca-Cola, um frasco de chucrute ou um imprestável televisor a cores com sistema estéreo, acabou por se transformar numa espécie de microlaboratório das mais vastas pretensões económicas que a RFA tinha para o País. “Graças à cooperação militar”, menciona o historiador Antonio Muñoz Sánchez, “a Alemanha conseguiu uma penetração económica muito grande em Portugal”.

Não foi apenas pela via do fornecimento de material e de armamento militar que a Alemanha Ocidental patrocinou a máquina bélica do Estado Novo. Foi também, segundo a tese de Ana Mónica Fonseca, o auxílio económico prestado a Portugal pelo governo federal e pelos privados alemães: “Este apoio

GRAÇAS À COOPERAÇÃO MILITAR, A ALEMANHA CONSEGUIU UMA GRANDE PENETRAÇÃO ECONÓMICA EM PORTUGAL

refletiu-se na concessão de créditos e do financiamento de projetos no Portugal metropolitano, que permitiram ao governo português custear o esforço de guerra nas províncias ultramarinas.”

No quinto volume da sua ampla biografia sobre Salazar, Franco Nogueira recorda a visita a Portugal do vice-chanceler alemão Ludwig Erhard, “o homem do milagre económico do ressurgimento germânico”, em maio de 1961. Erhard, que acumulava a pasta das Finanças federais, para além dos elogios de circunstância às facetas económicas e financeiras de Oliveira Salazar, estava autorizado para abrir a Portugal “sob a forma de financiamentos e projetos ou de empréstimos, créditos na ordem das centenas de milhões de marcos”.

Em paralelo, Portugal era também um verdadeiro cavalo de Troia para os interesses económicos alemães em África. O consórcio Zamco, por exemplo, espreitava a participação no megalómano negócio da construção da barragem de Cahora-Bassa, em Moçambique. E a Krupp não desdenhava avançar sobre as jazidas de minério de ferro de Cassinga, em Angola. Já em Beja, eram as portuguesas Somague e Tâmega, a soldo do governo germânico, que tomavam de empreitada a edificação de uma nova cidade... alemã.

A torre dos solteiros

Numa sala dos serviços administrativos hoje da Força Aérea Portuguesa, que foi construída para ser a “casa-forte” da Luftwaffe, ainda estão penduradas 340 chaves. Uma por cada uma das habitações que acabaram por ser edificadas com o objetivo de albergar o contingente alemão em Beja. E que desde 1994 servem de habitação às tropas portuguesas destacadas na BA11.

Como aconteceu com o complexo militar, também a cidade que estava projetada para albergar mais de 1.500 famílias vindas da Alemanha sofreu “uma grande redução. Isto era para ter sido uma coisa mesmo em grande e, mesmo assim, ainda é”, garante José Jeremias, que serviu no setor nacional da base aérea

enquanto meteorologista, e que agora, civil, trata das burocracias inerentes a uma cidade dentro de outra cidade.

No fim da década de 60, o designado “bairro alemão” era um mundo à parte. “Constituía praticamente uma cidade nova”, assinala o arquiteto Rui Mendes, que em 2018 dirigiu no local um “laboratório de arquitetura”. Os técnicos que a planearam, chefiados pelo engenheiro Costa Lobo, fizeram “visitas de estudo” à Alemanha para “obter conhecimento específico de modo a verter as características essenciais das necessidades sociais e culturais da nova população”. Para além das habitações, ficaram em projeto vários edifícios de uso coletivo: duas igrejas, uma católica e outra protestante, um hospital, um hotel, restaurantes, centro comercial, parques desportivos e zonas de lazer. “Alguns destes equipamentos chegaram a ser construídos”, confirma Rui Mendes, “outros ocupavam os cerca de 90 hectares que não foram usados em virtude da cessação do acordo”. Mesmo na “versão light”, há 60 anos Beja era a única cidade do País que tinha no seu núcleo “excentricidades” como duas florestas, quilómetros de ciclopistas e um heliporto.

Mas, ainda no dizer de Rui Mendes, a “construção mais inovadora e significativa”, da nova cidade ao “jeito germânico”, era a hoje desativada “torre dos solteiros”. Como o próprio nome indica, trata-se de um edifício único onde eram instalados os militares celibatários e que, até ordem interna restritiva emanada pelo próprio comando alemão, “tinham a fama de beber que nem esponjas, de desencaminhar as raparigas e de arranjar sarilhos”, recorda Martinho Marques, que serviu na base em pleno 25 de Abril e que era morador na vizinhança do Rio Escondido, a zona de baldios incultos e de bairros de lata onde foi edificado o bairro alemão.

Adeus, princesa

A “crise das raparigas de Beja”, que mereceu das autoridades locais uma nota onde alertavam para a circunstância de “serem suscetíveis de causar perturbação e conflito com a população masculina” deu inclusivamente o mote para um dos romances portugueses mais celebrados em Portugal no último quartel do século XX: Adeus, Princesa, de Clara Pinto Correia e que passou ao cinema pela lente do realizador Jorge Paixão da Costa. A escritora, que viveu e lecionou em Aljustrel nos anos 1980, verteu em livro a sua própria experiência no terreno em contacto com as adolescentes locais. Foi o choque sociocultural e económico entre a antiga e a moderna realidade local que mais a marcou. As raparigas, recorda, repetiam vezes sem conta “eu quero ir embora, não interessa para onde, eu quero ir embora”. Todas queriam arranjar “o seu alemanito”. E muitas arranjaram.

Outros, como Michael Deckarn, após o regresso ao seu país natal, findo o serviço militar, reconheceram que “aquela já não era a nossa casa”: “Tomámos a decisão de fazer as malas, pegar nos nossos filhos e mudámos para Portugal”. Em definitivo. E mesmo aqueles que se estabeleceram na Alemanha, Werner Ersch é disso exemplo, mantêm uma forte ligação à sua “experiência alentejana”.

Este antigo sargento-mor, “responsável pela compra das munições e de equipamentos de grande porte”, é atualmente o administrador de um site dedicado à presença alemã em Portugal, o Bejatreef,e um dos grandes impulsionadores do encontro anual que os antigos soldados germânicos, autointitulados “Bejaner”, organizam perto da cidade de Colónia: “Portugal tornou-se a nossa segunda casa. Um pouco da mentalidade das pessoas também passou para nós. Por isso, continuamos a não levar a pontualidade tão a sério.”

Ano após ano, esclarece Klaus Speildenner, “a vida dos bejenses melhorou e os bens de luxo tornaram-se acessíveis. Mas acho que os soldados e os funcionários alemães não eram bem-vindos... isso deveu-se principalmente aos tempos que se viviam naquela época”, conclui este escritor de bestsellers policiais passados em Hamburgo e que, em Beja, para além de editar o jornal Beja-Welle era responsável pelos paióis de munições. Era a época dos atentados à bomba e da inscrição de cruzes suásticas nas residências alemãs. A fase que precipitou o desmantelamento progressivo da única base militar que a RFA tinha fora do seu território. Que foi construída durante a Guerra Fria como reserva da salvaguarda da integridade da própria Alemanha. Mas que afinal acabou por alimentar as guerras africanas de Salazar. Tudo isto numa herdade de 800 hectares, plantada na planície alentejana. ●

A “CONSTRUÇÃO MAIS INOVADORA DA NOVA CIDADE ERA A HOJE DESATIVADA ‘TORRE DOS SOLTEIROS’”

Sumário

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2022-01-20T08:00:00.0000000Z

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