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Ninguém discute a bazuca?

Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

As eleições autárquicas foram, como é público, uma infeliz cartilha da cunha e de clientelismo partidário sobre a bazuca dos dinheiros europeus. O aparelho do PS jogou uma cartada maximalista, assente numa ideia de privilégio sobre o acesso aos fundos, dizendo, genericamente, votem em nós porque temos o telefone deste senhor (António Costa), e ele é a melhor garantia que temos para receber os dinheiros da Europa. A coisa correu mal aos socialistas mas, na verdade, também quase toda a oposição parece ter ficado traumatizada com o tema.

Na presente campanha eleitoral, a questão da bazuca tem sido pouco menos do que um estranho tabu. As referências têm sido discretas. Não se discute nem o seu gasto, nem a sua fiscalização. Não se discutem, sequer, algumas propostas que estão em cima da mesa, nomeadamente as mudanças que Rui Rio quer fazer na composição do Conselho Superior da Magistratura, abrindo a porta a uma maioria de políticos, ou de pessoas indicadas pelo poder político. Não tem nada a ver, argumentarão alguns. Não poderiam estar mais errados. A proposta de Rio, sendo irrelevante numa lógica reformista, abre a porta a uma discussão séria sobre a noção que o PSD tem hoje da separação de poderes, tema caro em Bruxelas e critério objetivo para a distribuição dos fundos.

Na verdade, nem é preciso uma interpretação demasiado extensiva da proposta do PSD para perceber que uma das consequências possíveis que ela comporta está no facto de colidir, potencialmente, com a independência do poder judicial, conforme ele é configurado nos parâmetros europeus de um Estado de direito. E este é, como se sabe, um critério muito importante.

A questão não se colocou apenas quando a Hungria e a Polónia quiseram acabar com a independência dos juízes e instrumentalizar os tribunais. Em Espanha, foi a Europa que travou uma politização ainda maior da cúpula do poder judicial, onde há muito se sentam demasiados políticos, negociados de acordo com as conveniências de PSOE e PP, sejam elas a diminuição de meios da Audiência Nacional, organismo que investiga e julga os crimes mais graves, entre os quais o de corrupção, ou inabilitar o ex-juiz Baltasar Garzón. Nos últimos três anos, o órgão de gestão do poder espanhol esteve paralisado. O PP bloqueou a tentativa do PSOE de nomear gente amiga do Podemos, parceiro de coligação governamental a braços com alguns processos. Se isto não é politizar a justiça…

A proposta do PSD, para lá de não resolver os verdadeiros problemas do Ministério Público, que existem e são muitos, pode revelar-se, portanto, um enorme embaraço na frente dos fundos. Uma frente, diga-se, onde as recentes limitações nos poderes do Tribunal de Contas, promovidas pelos socialistas, a saída do presidente desta instituição nas condições em que ocorreu, com um aplauso do Bloco Central a ecoar, também fazem temer o pior.

Para lá do escrutínio sobre a aplicação dos fundos como regra básica de uma sociedade democrática, há que garantir, a todo o custo, que eles não sejam transformados num pântano clientelar, como também já está a acontecer em Espanha. Aqui, a ausência de um critério técnico e a predominância de regras políticas, ao contrário de Itália, fez com que fossem distribuídos alguns milhões por mera conveniência partidária ou mero amiguismo. Os primeiros casos estão a surgir e a requerer a intervenção do poder judicial. Num outro plano, a justiça está também a ser chamada para arbitrar uma guerra política entre as comunidades autónomas e o governo central, com Madrid e a Galiza à cabeça, acusando Pedro Sánchez de distribuir o dinheiro a seu bel-prazer. Será trágico que esta bazuca milionária não ajude Portugal a recuperar da crise pandémica mas, sobretudo, a criar uma verdadeira economia de produção e competitividade, não meramente de assistencialismo. É uma obrigação da atual geração de políticos para com os jovens, para com os mais velhos que estão na reforma ou a caminho dela, para com os mais desprotegidos e carenciados, para com uma classe média que não consegue sair da cepa torta. Só com uma economia forte e a crescer será possível manter um Estado Social de padrões verdadeiramente europeus e não de pobrezinhos resignados a viver na cauda da Europa. É uma oportunidade histórica e os portugueses não lhes perdoarão. ●

Opinião

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2022-01-20T08:00:00.0000000Z

2022-01-20T08:00:00.0000000Z

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