Aesta hora, os teus pais estão a fazer a viagem de carro mais lenta da vida deles. Se pudessem, cobriam as estradas até casa com colchões de espuma, punham a cidade em “mute”, forravam o elevador do prédio com plástico de bolhas e ficavam para sempre na Disney em que tu lhes transformaste a vida nas últimas horas.

Neste momento, eles têm a cabeça feita em algodão-doce e acreditam que tu, sozinha, com essa carinha, podias acabar amanhã com a fome no mundo, os talibãs no Afeganistão e os erros do VAR no futebol português. Eu, que nem da família sou, já tenho a certeza disso.

Nasceste há dois dias, 11 horas e três minutos e há dois dias, 11 horas e três minutos que, sempre que me lembro do que aconteceu (que para mim foi como a canção: “como o riso vem ao ventre, assim veio de repente uma criança” – embora para a tua mãe possas não ter vindo como um soluço), penso que ainda bem que nasceste. Sem pressão: estamos a precisar de gente com ideias novas por aqui.

Não me entendas mal, não nos deves nada. Repara: acredito tanto nisto que quando acordei com o teu choro gravado num smartphone o que me saiu foi: “Oh, não, já nasceu?...” A primeira coisa que pensei quando tive a notícia do início

da tua vida foi: “Como é que eu me deixei dormir?”

Para entenderes porque é que “ansiedade” é a palavra do século: nasceste às 4h da manhã, havia um corpo clínico a cuidar de ti, havia a força da tua mãe e a calma do teu pai - e, repito, havia um corpo clínico a ocupar-se de ti –, e mesmo assim eu achei que tinha falhado contigo.

Foi um ato falhado, porque andamos a falhar todos: este mundo está em fim de stock. Fizemos muitas asneiras lá atrás e, embora se diga que ainda vamos a tempo, às vezes parece que nem que tivéssemos todo o tempo do mundo. Às vezes parece que o planeta está só velho e gasto e que em breve ficará zangado. Portanto, minha querida, estamos a precisar de ti e da tua página em branco. Sê bem-vinda. O mundo é teu. Pode não ser grande coisa mas é teu. Fá-lo tremer. WA PRIMEIRA COISA QUE PENSEI QUANDO TIVE A NOTÍCIA DO INÍCIO DA TUA VIDA FOI: “COMO É QUE EU ME DEIXEI DORMIR?”