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JOÃO PEDRO GEORGE

O Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

COM TODO O RESPEITO, continuo a desenredar a história do clitóris.

Vimos na semana passada que a carreira da vagina tem sido espectacular e que todos os caminhos –mau grado alguns percalços – passam pela vagina.

Crivada de discursos e representações, a atenção de escritores, artistas, psicanalistas, intelectuais, activistas e políticos tem estado sobretudo voltada para a vagina.

Já o clitóris costuma ser remetido para um plano secundário e a sua existência foi anunciada muito mais tarde.

Só no século XVI, à semelhança de europeus e índios quando se toparam pela primeira vez, é que alguns médicos se proclamaram os Messias do órgão eréctil do aparelho genital feminino.

Apesar de vir dos tempos de Ramsés (não sei, estou a inventar), de sempre ter havido milhões e milhões de clitóris, a sua anatomia permaneceu, até então, bela e adormecida.

Peço licença para perguntar: porque é que o clitóris, durante tanto tempo, não recebeu a atenção merecida. Ou recebeu e eu é que tenho andado distraído?

Se homens e mulheres viam a vagina, por que razão não veriam o clitóris? Porquê a ausência de testemunhas oculares?

Como explicar que ignorassem a localização, senão a existência, do clitóris?

Nunca antes um clitóris deu sinal de vida? Nunca falou? Manteve-se sempre intocável?

As mulheres, as que deveriam ter e têm maior interesse na vida do clitóris, que levavam e levam milénios de convívio com ele, nunca se bisbilhotaram de alto a baixo, espiaram de perto o botão do seu orgasmo? Nunca pararam diante dele? Nunca o questionaram? Não havia espelhos nessa altura? Ou pouco importava o que elas diziam sobre o seu sexo?

Convenhamos, é pouco crível que nem uma única mulher tivesse feito repetida e pormenorizada referência ao clitóris, lembrando-o e exaltando-o como merece.

E os homens? Em tantos séculos de relações sexuais, nunca sentiram curiosidade suficiente para se deixarem levar pelo estudo do clitóris?

Não se deram ao trabalho sequer de mergulhar até às “maravilhas lá em baixo”? Não gritaram “Eureka! Eureka”, como o filósofo que estava no banho? A vida era só enfado? Ninguém quebrava a monotonia?

O certo, certo, é que a identificação e a descrição do clitóris foram muito tardias. Mesmo depois da sua insólita revelação, a notícia não se espalhou: o clitóris não era muito falado, permaneceu um enigma e um segredo.

Raros eram os tratados médicos, incluindo os de Ginecologia, que o mencionavam.

Os historiadores ignoraram-no (na sua História da Sexualidade, Michel Foucault não lhe consagra uma única linha, não lhe atribui qualquer papel no “uso dos prazeres”, excepto quando evoca o clitóris “monstruoso” de um hermafrodita) e só recentemente começou a figurar nos manuais escolares.

Mesmo o interesse que o Dr. Freud manifestou por ele, na viragem do século XIX para o XX, só veio agravar ainda mais a situação.

Para o pai da psicanálise, como mais tarde para Sartre, o clitóris era um pénis menor ou mais pequeno. Uma piroca, por assim dizer, reduzida, compacta, interrompida, estropiada, aleijada, cortada. Enfim, castrada.

Não fosse a interferência do código genético da mulher, esta nasceria também com um pénis.

Em todas as células haveria uma predisposição para o pénis, mas as suas instruções seriam para ele sofrer, nas mulheres, uma espécie de amputação.

Do nada (ou talvez porque tanto o pénis como o clitóris ficam erectos e aumentam de tamanho quando estimulados, ou sob tensão sexual), Freud recorreu ao subterfúgio óbvio e permaneceu prisioneiro do modelo dominante de sexualidade, que atribuía à libido uma essência fundamentalmente masculina ou fálica.

Na sua obra, e na de muitos outros, a genitália masculina nunca é descrita em termos femininos, a sua visão da anatomia das mulheres era filtrada pelo olhar másculo.

Em função desta lógica, a mulher não passaria de um homem falhado e sentiria, inconscientemente, inveja do pénis.

Outra tese de Freud é que a normal evolução sexual da mulher passa pelo abandono da fase clitoriana do prazer em benefício do investimento vaginal, já que o seu instinto tende a obedecer à função reprodutiva do organismo.

A vagina e o clitóris, como dois inimigos, desenvolveriam nas raparigas uma relação de força, com a primeira acabando por prevalecer invariavelmente sobre o segundo.

Na mesma ordem de ideias, uma mulher não frígida seria aquela que, obedecendo a voz de comando do pénis, conseguiu abandonar as reivindicações do clitóris, para estabelecer definitivamente a função materna da vagina.

As coisas fantásticas que o autor de A Interpretação dos Sonhos viu no clitóris mostram que era um psicanalista cheio de palpites fossilizados.

De certo modo, e durante várias décadas, os discípulos de Freud alimentaram uma imagem capciosa do clitóris. Nunca se libertaram do peso da cultura “falocêntrica” que o sufocava.

A mesma cultura que, recusando-se a aceitar a autonomia do prazer feminino, recomendava, ainda em princípios do século XX, na Europa e nos EUA (e não apenas em África, como muitas vezes se acredita), a excisão, ou remoção cirúrgica, do clitóris para “tratamento de casos rebeldes do abominável vício”. Isto é, para impedir a masturbação frequente ou habitual.

E em alguns países árabes, a ablação do clitóris fazia-se para promover o orgasmo vaginal através da penetração masculina e desencorajar o lesbianismo (sobretudo quando praticado nos haréns).

Malquisto, considerado obra do Diabo (a mulher-demónio sempre foi um símbolo totémico), o clitóris foi associado ao histerismo, delírios, obsessões, narcisismo, convulsões por excitação notável dos órgãos genitais, mas também a patologias de lésbicas, hermafroditas e ninfomaníacas.

Entretanto, as teorias avolumaram-se, as ideias evoluíram. A primeira a introduzir o conceito de vulva na filosofia e a falar abertamente do clitóris, para lhe conferir a singularidade de um prazer desligado da maternidade, foi Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo.

Apesar de Beauvoir, apesar das reivindicações do prazer da mulher e das reflexões feministas de Hélène Cixous, Judith Butler ou de Paul B. Preciado, o clitóris continuou a ser objecto de alguma incompreensão.

Duvidam? O dicionário de sexologia do Dr. Hugo G. Beigel, membro-fundador da Society for the Scientific Study of Sexuality e primeiro editor do Journal of Sex Research, que o Círculo de Leitores traduziu em 1982, insiste no clitóris como “pénis feminino”, formula a hipótese de “a excessiva masturbação clitórica” diminuir “a sensibilidade do órgão” e afirma que “entre as rapariguinhas muito jovens, o órgão sexual masculino é, por vezes, objecto de inveja (inveja que a rapariga tem do facto de não possuir um pénis como o rapaz). Assim que se apercebem das diferenças sexuais, as raparigas parecem alimentar, por vezes, o ressentimento por não terem pénis. Se esta inveja não for vencida, pode levar a censura contra a mãe, que é criticada por esta falta; pode, mais tarde, vir a ser uma obstinação e desembocar numa atitude agressiva e protesto contra o papel feminino. Pensa-se que esta será uma das razões da cleptomania”.

Como dizia Camilo, “ora vejam o que são as mulheres!... Fiem-se lá!…”. (Continua) W

Sumário

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2021-09-23T07:00:00.0000000Z

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