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RAIO-X AO CAOS DO SNS

Fátima ficou 7 horas nas urgências e foi para casa sem ser vista. Motivo? Faltam médicos

Fátima Moreira ficou sete horas nas urgências do Hospital de São José, em Lisboa, e não foi assistida. A fiscal da EMEL sentiu-se mal dois dias depois de tomar a segunda dose da vacina contra a Covid-19. “Tinha a respiração ofegante, sentia um formigueiro pelo corpo e um cansaço extremo. Não me conseguia mexer”, conta. Chegou às 16h20 e recebeu a pulseira verde, a menos prioritária. O ecrã eletrónico indicava um tempo de espera de 2h30, mas às 19h e depois de ter vomitado, Fátima Moreira ainda tinha 12 pessoas à frente. Quatro horas depois, às 23h, garantiram-lhe que seria a próxima, mas não a chamaram. “Tinha ainda mais três pessoas à frente. Estava pior do que quando tinha entrado e fui-me embora.”

O tempo de espera deve-se à falta de médicos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Num serviço de uma unidade da região de Lisboa, são 11 médicos, quando deviam ser 23. Destes, oito têm mais de 55 anos e não são obrigados a fazer 24 horas de urgências por semana. Mas fazem-no. “As urgências não fecham devido ao esforço enorme dos médicos, dos internos e dos tarefeiros”, garante à SÁBADO o diretor do serviço, que prefere não ser identificado. No ano passado, saíram cinco médicos, alguns por rescisão, e nos próximos dois anos vão aposentar-se mais quatro. As vagas não têm sido preenchidas. “Os internos que formamos vão-se embora para outros hospitais. Tivemos um que recebeu o convite de um membro do júri do exame de especialidade, para ir para o Hospital Beatriz Ângelo. Imagino que um hospital com parceria público-privada tenha mais recursos para oferecer.”

Para fazer face à falta de médicos no quadro, os hospitais contratam especialistas prestadores de serviço. Mas os chamados tarefeiros não resolvem o problema. “São médicos

Mais de um milhão de utentes sem médico de família, urgências com horas de espera, médicos exaustos e recém-formados que preferem o setor privado. Retrato do SNS à beira do caos. Por Susana Lúcio

FÁTIMA MOREIRA ESPEROU SETE HORAS NAS URGÊNCIAS DO HOSPITAL DE SÃO JOSÉ E NÃO FOI ASSISTIDA

em outros hospitais e quando lhes alteram a escala não podem vir.” Para as urgências não fecharem, o diretor já fez três períodos de 24 horas numa semana. “Fazemos milagres todas as semanas. É desgastante e desmotivante. E quando não se prevê alteração no futuro, torna-se insustentável.” Os utentes culpam os médicos pelo tempo de espera, mas o diretor assegura que não. “Estamos em sobrecarga todos os meses do ano. Já tivemos um colega que teve um enfarte durante o serviço e outro que sofreu um AVC.”

O hospital está sinalizado como carenciado e os médicos que se candidatarem a vagas recebem incentivos financeiros: mais 40% do salário-base durante seis anos. Mas nem isso atrai os recém-especialistas, que preferem o setor privado. “Às vezes há seis vagas no hospital, mas só duas delas é que têm incentivos garantidos.” E o acréscimo salarial não basta. “Os recém-especialistas querem trabalhar em equipas completas, não querem ficar logo à frente de serviços por falta de médicos.”

Mil horas extraordinárias

O problema é comum em todo o País. “Na maioria dos hospitais, as equipas de urgência externa estão abaixo do número que a Ordem dos Médicos estabelece”, denuncia Jorge Roque da Cunha, presidente do Sindicato Independente dos Médicos. “E por falta de médicos, deixa de haver equipas de urgência interna que acorrem às urgências nas enfermarias.” Se nada for feito, o cenário tem tendência a piorar: nos próximos três anos, cerca de 1.600 assistentes hospitalares vão aposentar-se.

Luís Pisco, presidente da Administração Regional de Saúde e Vale do Tejo, considera que parte do problema resolve-se com o aumento da capacidade de formação – de que é exemplo a faculdade de Medicina da Universidade Católica de Lisboa – e com o aumento do número de vagas de especialidade. Mas o sindicalista Jorge Roque da Cunha garante não existir falta de médicos em Portugal. “O que existe é falta de médicos no SNS.” Q

Para além dos recém-especialistas que não se candidatam às vagas, há muitos médicos a rescindir com o SNS. “Um salário de 1.700 euros líquidos, que é o que ganha um médico especialista com contrato de 40 horas semanais em início de carreira, limita muito a fixação dos profissionais”, assegura o sindicalista. Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional de Médicos, concorda. “Queremos um salário condigno da responsabilidade e penosidade da profissão.”

Pedro Azevedo rescindiu com o SNS há dois meses. “Tenho dois filhos pequenos e quero estar com eles. E tornou-se complicado equilibrar o tempo em casa e no trabalho.” Trabalhou 13 anos no Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde fez o internato de medicina interna e foi assistente hospitalar, chefe de equipa de urgência e coordenador da consulta de medicina obstétrica e medicina interna. Reconhece o papel do SNS, mas a carga de horas extraordinárias exigida ditou a saída. “A medicina interna é a pedra basilar de um hospital, mas não pode ser sinónimo exclusivo de urgências. Por ano, fiz entre 800 e 1.000 horas extraordinárias – são mais de seis meses de trabalho em urgência.”

A medicina interna é a especialidade dedicada ao diagnóstico, mas com a redução das equipas de urgência tem-se transformado numa especialidade dedicada à urgência. Isso tem retirado disponibilidade para a restante atividade assistencial: os doentes internados e as consultas externas. A própria assistência aos doentes está comprometida no SNS. “Quando investigamos um doente queremos que os exames pedidos, como ressonâncias e colonoscopias, sejam realizados em tempo útil. Mas há exames com listas de espera de meses. É uma pedra na engrenagem.” O médico quis ter tempo para outras atividades profissionais. “A prática médica não se esgota nas urgências e na restante atividade assistencial. Há a investigação, a docência. É também isso que se pede aos médicos, para que um serviço se torne centro de referência.” Agora é coordenador de medicina interna na Clínica CUF Almada.

Bebés sem médicos de família

Nos centros de saúde, a situação não é melhor e o número de utentes sem médico supera o milhão. É o caso de Elsa Simões. Em 2017, grávida, reclamou por carta não ter médico há dois anos. Na altura, a reclamação resultou e foi-lhe atribuído um médico. Mas a história repetiu-se. “Quando a minha filha nasceu, em agosto de 2020, tentei marcar consulta e fui informada de que não tinha médico. A minha médica tinha-se reformado.” Voltou a reclamar, mas desta feita sem resultados. “Recebi uma carta do Centro de Saúde do Olival a informar que era impossível atribuir médico, já que havia 23.724 utentes sem assistente, 748 dos quais com menos de 5 anos.” Elsa Simões ficou sem reação. “Sei que esta zona tem muita densidade populacional, mas um bebé sem médico de família?! Devia ter prioridade.” A família é seguida no privado.

Faltam médicos sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo e os que tiram a especialidade não estão interessados no SNS. No último concurso, em agosto, um terço das 459 vagas ficou por preencher. Catarina Pinheiro nem sequer se candidatou. “Quando estamos a tirar o curso, a perspetiva é ajudar o outro. Mas a incapacidade de dar resposta do SNS perturbou a atividade assistencial: temos de lidar com problemas burocráticos e os doentes chegam ao consultório tensos.”

Mara Marques trabalhou durante três anos num centro de saúde das Caldas da Rainha. “A experiência foi péssima. Tinha uma lista de 1.600 a 1.700 utentes – quando deveriam ser apenas 1.550, segundo a lei – e tinha ainda de atender os utentes sem médico, que ao todo eram

ELSA SIMÕES TEM DOIS FILHOS PEQUENOS E NENHUM DOS TRÊS TEM MÉDICO DE FAMÍLIA NO CENTRO DE SAÚDE DO CACÉM

12.000.” Para conseguir dar resposta a todas as consultas, muitas vezes só parava 10 minutos para almoçar e ficava quase sempre depois da hora de saída. A dimensão das listas de utentes é um dos problemas apontados pelo sindicalista Noel Carrilho. “Exigimos a redimensão das listas porque é impossível cumprir o compromisso assistencial.”

A pandemia veio reduzir ainda mais o tempo dedicado aos seus doentes. “Somos os provedores dos nossos doentes, sei que têm de ter consulta regularmente, mas só o conseguem ao fim de três meses! Assim, o propósito de ser médico de família deixa de fazer sentido.” Rescindiu no dia 9 de agosto.

Para António Alvim, médico de família na Unidade de Saúde Familiar (USF) Rodrigo Miguéis, em Lisboa, haveria mais interesse dos recém-especialistas no SNS se a reforma dos cuidados primários que em 2008 prometia tornar todos os centros de saúde em Unidades de Saúde Familiar de modelo B (mais autónomos e exigentes em termos de objetivos e que recebem mais incentivos financeiros do Estado) se tivesse concretizado. “Nestas USF, os médicos são pagos pela dimensão e desempenho da unidade e recebem uma remuneração interessante, entre os 6 e os 7 mil euros [ilíquidos].”

Para passar a modelo B, as USF têm de passar por um período de tempo em modelo A, em que a remuneração é menos de metade e o número de utentes por médico chega aos 1.900. Só após a aprovação do Ministério da Saúde é que uma USF passa de A a B. “Em 2008, 85% das USF passaram para modelo B em três anos, agora demora 10 anos. As expectativas dos médicos que entram agora é de ir tapar buracos em centros de saúde mal organizados, a atender listas de utentes muito grandes e ainda os utentes sem médico”, diz à SÁBADO. “Preferem ir trabalhar para as urgências dos hospitais privados ou como tarefeiros nos públicos, onde ganham mais.”

“POR ANO FIZ ENTRE 800 E 1.000 HORAS EXTRAORDINÁRIAS – SÃO MAIS DE SEIS MESES DE TRABALHO EM URGÊNCIA”

O salário é um dos fatores, mas não é o mais importante, segundo Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. “Há unidades instaladas em edifícios desastrosos, falta equipamento técnico, há telefones e impressoras que não funcionam”, enumera. “Se não colmatarmos estas deficiências, os recém-especialistas não vão escolher o SNS.”

Integrar o setor privado

A solução seria concluir a reforma dos cuidados primários e torná-los em modelos B. Mas para António Alvim, devia ir-se mais longe. No livro, Um Manual para a Mudança na Saúde - Porquê Mudar e Como, o médico defende a integração com o setor privado. “Os utentes que têm seguro podiam optar por um médico privado, desde que este pudesse passar exames comparticipados pelo SNS.” Mais: unidades de saúde privadas convencionadas. “Os utentes não estariam em pé de igualdade, é verdade. Mas a ideia do SNS para todos não está a acontecer porque não tem capacidade de resposta. E são os mais carenciados que ficam de fora.”

O médico considera ainda que o financiamento do SNS deveria ser da responsabilidade de um organismo independente. “O SNS está dependente do Ministério das Finanças que o mantém subfinanciado para evitar derrapagem de recursos. Devia ser financiado por uma entidade privada, para a qual os utentes poderiam contribuir.”

Luís Pisco acredita que as condições de trabalho irão melhorar com os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “O jovem médico aprecia boas instalações e equipamento adequado e o PRR pode ajudar na construção de centros de saúde e em tecnologia”, diz o presidente da ARSLVT. O exemplo a seguir é a Holanda, onde 95% dos problemas de saúde dos utentes são resolvidos nos cuidados primários. Para isso, é necessário mais médicos, enfermeiros e assistentes operacionais, mas também nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais. “Não existem em número suficiente”, assume. W

Sumário

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