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A banca não vê sinais de alerta no fim das moratórias de crédito à habitação. Para as situações de risco há novas regras contra o pecado capital do devedor: a inércia.

As moratórias vão acabar – e agora?

Não foi logo no início da pandemia, em março de 2020, que Adelaide Cruz decidiu recorrer à moratória sobre os seus créditos pessoais. A empresária, de 47 anos, gere com o marido um pequeno negócio na área do turismo que inclui alojamento local (AL) e organização de programas como passeios de barco no Tejo e caminhadas gastronómicas. “Recorri à moratória quando cheguei perto do verão e vi que a pandemia se ia prolongar”, conta. O mês era julho e o turismo estava numa paralisia sem fim à vista, corroendo as poupanças do casal. “Agi por precaução e escolhi a opção de continuar a pagar os juros”, diz.

Ficou a pagar cerca de 75 euros de juros relativos a dois créditos à habitação – o da casa onde vive e outro mais recente para um apartamento a explorar em AL – e deixou no congelador da moratória cerca de 600 euros mensais em amortizações de capital. Agora, a dias do fim da moratória, conta que já foi contactada pelo banco e que comunicou que vai retomar os pagamentos no próximo mês. “Prefiro pagar e abater o capital do que empurrar com a barriga para a frente”, afirma.

O caso de Adelaide Cruz é um entre os cerca de 238 mil que pediram a moratória pública de crédito à habitação, cujo regime termina no fim deste mês. Este não é o primeiro teste para devedores e bancos – as moratórias contraídas ao abrigo do regime privado terminaram em março e as de crédito ao consumo acabaram em julho – mas é de longe o maior. Um em cada 10 devedores de crédito à habitação tinha uma moratória no fim

de julho passado, num montante global de 12,9 mil milhões de euros, segundo o Banco de Portugal. Até ao aparecimento das vacinas e à eliminação de uma parte da incerteza sobre a pandemia era notória a preocupação dos gestores da banca com o fim das moratórias – em março deste ano, o presidente da Caixa Geral de Depósitos, Paulo Macedo, chegou a dizer que só os apoios públicos evitariam um “tsunâmi de crédito malparado” após o fim das moratórias.

Mas esse sentimento tem mudado com a evolução positiva no controlo da pandemia e, pelo menos no caso das moratórias às famílias, a previsão da banca é menos negativa (nas empresas a preocupação é maior – ver caixa). “A maior parte das pessoas pediu a moratória por precaução e quem vai incumprir era quem já iria incumprir por causa da crise, com ou sem moratória”, diz sob anonimato um gestor de clientes de um dos maiores bancos em Portugal. Os bancos têm acompanhado de perto os clientes com moratória, procurando perceber se há alterações na sua situação – se estão desempregados, por exemplo – e identificando as situações de maior risco.

Matar a inércia

No Banco de Portugal, que trabalha com a informação enviada pelos bancos, a perceção é de que não há sinais de alarme sobre uma torrente de incumprimentos – o cenário central é de que muitas moratórias foram pedidas como a de Adelaide, por precaução, que o fim das moratórias anteriores (em maio e em julho) não levaram a aumentos significativos no incumprimento e que a massa salarial na economia aumentou em 2 mil milhões de euros face a 2020.

Não ter uma explosão do crédito malparado com consequências sistémicas para a banca (e os contribuintes) não afasta o cenário de dificuldades financeiras para milhares de famílias que terão de retomar os pagamentos. As pessoas nestas situações “muitas vezes bloqueiam, não sabem o que fazer e deixam andar”, explica Rui Cunha Santos, sócio da Doutor Finanças, uma empresa de consultoria de finanças pessoais.

Para evitar esta inércia, e travar a acumulação de risco no balanço da banca, o Banco de Portugal passou a obrigar os bancos a contactarem os clientes nos 30 dias antes do fim da

39% famílias

O crédito de particulares é menos de metade do total sob moratória, que em julho era de 36,8 mil milhões de euros

moratória, a avaliarem a situação e a apresentarem uma alternativa nos 15 dias antes do fim do prazo, caso identifiquem “indícios de riscos de incumprimento”.

É o chamado PARI, a sigla para Plano de Ação para o Risco de Incumprimento, que abre a comunicação entre o banco e o cliente. O banco olha em primeiro lugar para a taxa de esforço do cliente, ou seja, o peso da prestação no rendimento disponível – valores acima de 50% são um dos alertas para a necessidade de intervenção.

Há vários desfechos negociais possíveis para quem negociar com o banco antes do incumprimento – a mais vantajosa para o cliente, caso seja suficiente para resolver o problema, é a renegociação dos spreads do empréstimo. Quem tenha spreads acima de 2% tem margem para renegociar com o banco uma taxa mais baixa.

Adelaide Cruz conta que foi contactada pelo banco, que a sondou sobre a sua situação e lhe apresentou como alternativa ao reinício dos pagamentos mensais a concessão de um novo período de carência de capital – uma nova moratória –, embora a tenha desaconselhado a seguir essa via. Mesmo que seja negociada entre as partes, esta contaria como uma operação de reestruturação de crédito e ficaria registada na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, dificultando a obtenção de créditos futuros. Recusou e vai retomar os pagamentos. “Do banco disseram-me que havia quem não tivesse recorrido à moratória por precaução”, diz. “Nesses casos vai ser difícil.” W

“QUEM VAI INCUMPRIR É QUEM JÁ IA INCUMPRIR MESMO SEM A MORATÓRIA”, DIZ UM BANCÁRIO

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2021-09-23T07:00:00.0000000Z

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