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Alemanha

A primeira mulher à frente de um partido na Alemanha e também a primeira chanceler diz adeus ao governo depois de 16 anos. Estas foram as suas conquistas, derrotas e frustrações.

Por João Carlos Espada

Angela Merkel sai de cena. O legado deixado pela chanceler

Prudência e pragmatismo permitiram à filha de um pastor luterano e de uma professora de inglês e latim, radicados na República Democrática Alemã desde 1954, doutorar-se em Química e enveredar pela investigação na Academia de Ciências.

Chegada à política aos 35 anos, após a queda do Muro de Berlim, valeu-lhe a proficiência em inglês e russo para se destacar ao serviço de Lothar de Maizière, democrata-cristão que assumiu a chefia do derradeiro governo da RDA em abril de 1990. A diligência da novata vinda do Leste agradou a Helmut Kohl que a nomeou, em 1991, para o Ministério das Mulheres e Juventude no primeiro gabinete da Alemanha reunificada, promovendo-a três anos depois a ministra do Ambiente e Segurança Nuclear.

Dois meses após a derrota conservadora nas eleições de setembro de 1998, Merkel foi indigitada secretária-geral da CDU e passado um ano demarcava-se publicamente do seu patrono a braços com o escândalo de financiamentos ilegais ao partido.

Método e frieza serviram a ambição de Merkel para neutralizar Wolfgang Schläube, sucessor de Kohl, e, em abril de 2000, tornou-se a primeira mulher a liderar um partido alemão, mas demorou a consolidar apoios para uma candidatura à chancelaria.

Na liderança da oposição no Bundestag à coligação SPD-Verdes, na sequência da derrota do líder da CSU bávara Edmund Stoiber frente a Gehard Schröder nas legislativas de 2002, Merkel assumiu as tradicionais teses conservadoras de economia social de mercado. Numa das raras instâncias em que se posicionou ao arrepio da opinião pública, Merkel advogou a intangibilidade da aliança com Washington apoiando a invasão do Iraque de 2003, mas, contrabalançou esta atitude com a oposição a uma eventual adesão da Turquia à Comunidade Económica Europeia.

Nas eleições de 2005, a CDU-CSU arrancou com uma vantagem de 21% nas intenções de voto, mas Merkel fez numa campanha desastrosa. Conseguindo uma vantagem de

apenas quatro deputados, teve de pactuar com os social-democratas uma Grande Coligação, repetindo o expediente tentado pela primeira vez entre 1966 e 1969.

Merkel chegou a chanceler precisamente quando a taxa de desemprego de 11% começava a baixar, fruto da adaptação da economia às reformas laborais e de segurança social introduzidas por Schröder a partir de 2003, permitindo reduzir a despesa pública e aumentar receitas de IVA e de impostos sobre o rendimento. A proliferação de empregos de baixa remuneração haveria, contudo, de revelar-se um dos frutos amargos das reformas e causa do aumento das desigualdades sociais em 16 anos de crescimento real médio anual de 1,1% do PIB, marcados por escasso

MERKEL E SCHLÄUBE ADVOGARAM AUSTERIDADE ORÇAMENTAL E ACUMULAVAM EXCEDENTES ORÇAMENTAIS

investimento em infraestruturas.

Entre 46,5 milhões de trabalhadores, 7 milhões subsistem em empregos precários, 36% das mulheres – que representam 42% da mão de obra total – recorrem ao trabalho parcial e só 28% ocupam cargos de chefia empresarial. Presentemente, 3,8% da população dispõe de ativos superiores a meio milhão de euros e 15,9% incorre em risco de pobreza, auferindo menos de 60% do salário médio mensal orçado em €1.176.

É a outra face da vaga alta da globalização que, graças ao câmbio atrativo do euro, possibilitou à Alemanha afirmar-se como potência comercial, apesar da sua baixa competitividade digital.

Poder e preconceito

A chanceler começou por subestimar a crise financeira e bancária, iniciada no verão de 2007 nos Estados Unidos com a hecatombe dos empréstimos hipotecários de alto risco, mas em setembro de 2008 adotou medidas de emergência de resgate e recapitalização da banca.

Merkel reforçou a sua posição a expensas do SPD nas eleições de 2009 e coligou-se com liberais do FDP. A segunda coligação de Merkel enfrentou a crise de dívida soberana, gerada por défices da balança de pagamentos, que pôs em causa a moeda única e abalou a Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda e Chipre.

Merkel, com Schläube nas Finanças, advogou austeridade orçamental, enquanto acumulava excedentes orçamentais e de balança de transações correntes, ignorou as responsabilidades da banca alemã por défices excessivos alheios, e só aceitou resgates negociados com a UE, BCE e FMI, ante o risco de efeito dominó que acarretaria uma saída da Grécia do euro.

A união monetária imperfeita, sem orçamento comum e mecanismos de transferências orçamentais, deixou a claro insuficiências de supervisão bancária, ausência de mecanismos macroeconómicos de ajustamento, e reforçou preconceitos.

Défices e descontrolo orçamentais associam-se à hiperinflação dos anos 1922-23 e este pavor continua a justificar uma política de défice zero e o veto à mutualização de dívida, mesmo com o lançamento de obrigações pela Comissão Europeia para financiar o pacote de €750 mil milhões de recuperação económica.

A cláusula constitucional adotada em 2009 de limite de dívida obriga o governo federal a um défice orçamental estrutural máximo de 0,35%, descontando efeitos de ciclo económico, com exceção de desastres naturais ou emergências graves, como sucede com a crise provocada pela pandemia, e é pedra basilar da frugalidade alemã que beneficiou do Plano Marshall e do perdão de dívidas da I Guerra Mundial em 1953.

No retorno a nova coligação com o SPD no fim de 2013, Merkel teve de aceitar a introdução de um salário mínimo e confrontou-se com a crise humanitária de 2015, ameaça fatal ao acordo de Schengen.

A vaga de mais de um milhão de refugiados oriundos maioritariamente da Síria, Iraque e Afeganistão revelou-se impossível de conter na Grécia, Hungria e Áustria e levou Merkel a abrir temporariamente as fronteiras em setembro.

As polémicas quotas de refugiados

“Wir schaffen das!”, ecoando “Yes, we can!” de Obama, foi justificado por imperativo ético de ajuda e com o argumento de que migrantes jovens dinamizariam uma Alemanha carente de mão de obra.

Seguiu-se a polémica com a falhada tentativa de imposição de quotas de refugiados aos estados da UE e a negociação com a Turquia, Líbia e Marrocos de pacotes financeiros para criação de campos de processamento de migrantes e assistência a comunidades de refugiados, sem que até hoje os 27 tenham política coerente de migração e acolhimento de refugiados.

Num país, que enfrentava dificuldades na integração da comunidade turca (2,7 milhões em 2017, num total de 11,4 milhões de estrangeiros), a nova vaga de migrantes gerou rejeição agravada, no Leste, pelo ressentimento das agruras da reunificação entre 13 milhões de ossies com rendimentos abaixo da média nacio- Q

Q nal e sub-representação nas instâncias de poder.

A fragmentação do sistema partidário, iniciada nos anos 80 com a aparição dos Verdes, acentuada com a aliança comunista A Esquerda a partir de 2007, culminou na formação da Alternativa pela Alemanha, em 2013, congregando a extrema-direita.

Inclemente revelou-se, também, a decisão, na sequência do desastre de Fukushima em 2011, de encerrar os 17 reatores nucleares existentes até 2022 e iniciar uma transição energética condicente com uma estratégia de mitigação de alterações climáticas que conduziria ao Acordo de Paris em 2015. No primeiro semestre desse ano, no entanto, 56% da eletricidade era produzida com recurso a fontes convencionais, representando o carvão 27% desse total.

O Tribunal Constitucional, em nome dos direitos das gerações mais jovens, obrigou o governo a rever objetivos: 2045 e não 2050 como meta para neutralizar o impacto da emissão de gases com efeito de estufa que em 2030 deverá baixar 65% em relação a 1990.

Com emissões de carbono per capita de 8,4 toneladas métricas, tal desiderato dificilmente será alcançado e o recurso ao gás natural no quadro da transição energética foi justificação para iniciar em 2011 a construção do gasoduto Corrente Norte 2.

Os fornecimentos russos através do Báltico poderão dispensar ou reduzir, à revelia de Kiev e Varsóvia, o fluxo dos gasodutos que atravessam a Ucrânia e a Polónia, mas representam o equilíbrio possível na contenção

À CRISE DOS REFUGIADOS RESPONDEU COM “WIR SCHAFFEN DAS!”, O “YES, WE CAN!” DE OBAMA 4 Presidentes norte-americanos (Bush, Obama, Trump e agora Biden) e outros tantos franceses (Chirac, Sarkozy, Hollande e Macron) foram seus contemporâneos

política de Moscovo, mantendo as sanções pela ocupação da Crimeia em 2014, sem prejudicar os interesses de Berlim.

A mesma lógica, aceite pelos parceiros sociais-democratas que em 2018 renovaram o pacto de coligação, preside ao entendimento com a China que desde 2015 é o principal parceiro comercial.

E depois do Brexit?

Para preservar o acesso do setor automóvel ou de máquinas-ferramenta ao mercado chinês, Merkel tentou impor à UE um acordo comercial e de investimento com Pequim, contestando as crescentes objeções à entrada de capitais chineses em áreas estratégicas e de tecnologias sensíveis.

No esforço para renovar tradicionais esferas de influência no Centro e no Leste europeus, nos Balcãs e no Báltico, com o alargamento da UE desde 2004, Merkel não ignorou a necessidade de garantir a cobertura de segurança de Washington e ignorou sucessivos planos tecnocráticos franceses de integração política na UE sob a tutela de Paris e Berlim.

O Brexit acabou por reforçar a centralidade de Berlim na UE, acrescida da eleição de Ursula von der Leyen para a presidência da Comissão, mesmo quando a conveniência política levou Merkel a condescender com a deriva autoritária de Viktor Orbán na Hungria desde 2010 até o Fidesz abandonar em março o Partido Popular Europeu.

A normalização da Alemanha como estado plenamente atuante na cena internacional foi marcada por continuados atos de contrição pelo nazismo e o pagamento, acordado em maio, de reparações à Namíbia pelo genocídio colonial dos Herero e Nama.

A participação na missão da NATO no Kosovo em 1999, sob mandato da ONU, abrira, por outro lado, caminho à mobilização para missões militares no estrangeiro.

O desinvestimento na defesa, cujos custos equivaliam a 3% do PIB nos anos 80, foi, no entanto, fatal para a capacidade operacional da Bundeswehr (as forças armadas). As despesas militares representam 1,57% do PIB e, azedando as relações com Washington, não há sinais de que Berlim venha a cumprir o compromisso assumido em 2014 na cimeira da NATO em Newport, no País de Gales, de chegar aos 2% em 2024.

Atrasos na construção do aeroporto Berlim-Bradenburgo, operacional desde outubro de 2020 (14 anos após o início da construção), o escândalo de emissões poluentes de veículos da Volkswagen, revelado em 2015, ou da financeira Wirecard, em 2020, não abalaram o prestígio da chanceler como gestora prudente e negociadora ponderada de compromissos.

Merkel sai com o amargo de ter falhado o desafio de definir os termos da sucessão com a aposta fracassada em Annegret Kramp-Karrenbauer e a derrota à vista de Armin Laschet. W

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