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COQUELUCHE DO PS AUTÁRQUICO EM LISBOA, MARGARIDA MARTINS ESTÁ DE NOVO ENVOLVIDA NUMA POLÉMICA. O CASO ENVOLVE

Por Marco Alves (texto e fotos)

Margarida Martins é recandidata à Junta de Freguesia de Arroios, mas a Segurança Social reclamalhe €47 mil e penhorou-lhe salário e casa. Entretanto, a SÁBADO filmou-a e fotografou-a nas suas compras pessoais (sem pagar) ao sábado. Um carro da junta e umfiscal vão buscá-la e levá-la a casa.

“Figos! Figos!” Eram 12h10 do passado 10 de julho quando Margarida Martins, presidente da Junta de Freguesia de Arroios, fazia o seu pedido a um vendedor de fruta do mercado 31 de janeiro, em Lisboa. Parecia uma cena normal de uma pessoa normal a fazer compras num sábado de manhã num mercado, mas o que aconteceu teve dois detalhes anormais.

“Figos! Figos!”, repetiu. E depois outra vez: “Figos!” O vendedor pegou então numa pequena caixa de plástico, encheu-a de figos e meteu-a num dos sacos que ela tinha junto aos pés. A autarca tinha chegado minutos antes, às 12h07, e antes de se sentar já tinha gritado por “figos!”. Alguém lhe disse, a brincar, que não havia, mas ela respondeu de pronto: “Há, há.” E havia de facto, estavam mesmo à sua frente. “É para a minha festa de anos”, disse a autarca do PS, que faria 68 anos no dia seguinte.

Margarida Martins sentou-se então, e às 12h09 o vendedor pegou num saco e colocou lá dentro uma grande caixa, daquelas de cartão que levam dois quilos, cheia de cerejas. Depois, uma caixa de morangos. E depois duas mangas, tão grandes que ficou preocupada com o peso. “Não ponhas em cima das cerejas.” Depois, veio um grande melão. E como não parava de pedir figos, eles vieram.

O primeiro detalhe anormal é que nada foi pesado. As cerejas, os morangos, as mangas, o melão e os figos foram tirados da banca e colocados no saco de Margarida Martins. O segundo detalhe anormal foi que Margarida Martins abandonou a banca sem pagar a mercadoria. Poderia ser tudo pago mais tarde, mas como se paga o que não foi pesado?

A SÁBADO sabe os minutos a que tudo isto aconteceu porque filmou Margarida Martins nas suas compras matinais em todos os sábados de junho e julho, uma vez que há muito corriam histórias na freguesia sobre situações inusitadas no mercado 31 de janeiro. Não era apenas a cidadã Margarida Martins a fazer compras. Recorde-se que a gestão dos mercados de Lisboa pertence às juntas de freguesia desde que essa competência (entre outras) lhes foi dele

Q gada pela câmara aquando da reorganização administrativa da cidade (lei nº 56/2012). Ou seja, quem manda neste mercado é a presidente da junta de freguesia de Arroios, que no caso é Margarida Martins.

Todos o sabem, e se não souberem basta vê-la, mesmo aos sábados, a dar ordens e indicações, a tratar de assuntos de gestão com comerciantes (ouvimos um a perguntar-lhe “Não me vão tirar o lugar, pois não?”), ou a entrar e a sentar-se na loja que a junta tem no mercado (e onde também guarda as suas compras). Não se percebe a diferença entre o plano privado e o público, ao contrário, por exemplo, dos dois ministros residentes em Arroios que vimos várias vezes a fazer as suas compras neste mercado, a pagar e a ir embora: Marta Temido (Saúde) e João Gomes Cravinho (Defesa).

O comerciante de fruta em causa, Adelino Cardoso, justifica-se à SÁBADO: “Não lhe cobro a fruta. Não me sinto à vontade. Não tenho coragem. Sinto gratidão pelo que ela tem feito por nós, comerciantes. Aquilo que ela leva é zero, quase nada.” Falámos-lhe da fruta levada no dia 10 de julho e apontámos para €25. “Se era uma caixa grande de cerejas era mais, essas caixas têm cinco quilos. Foi uns €40 a €50.” Não é uma insignificância, concorda? “Depende. O que não é insignificante para vocês, pode ser para mim. Se ela vier cá mil vezes, mil vezes não lhe cobro. Consegue perceber a coisa?”

Outros comerciantes não quiseram falar. Já Leonor Neves, que tem uma banca de doces e compotas, diz que “Margarida Martins está ao serviço da população, não somos nós que temos de estar ao serviço dela. Não posso oferecer nada. Aqui paga. No início tentou, mas eu disse-lhe ‘isso é para pagar’.” Tentou como? “‘Olha, vou levar este chocolate.’ Não, o chocolate é para pagar... Foi só isso. Pagou e foi-se embora. A partir daí, nunca mais. Ela compra.”

Marco Sebastião, que tem uma loja de frutos secos, diz à SÁBADO que também costuma oferecer algumas coisas a Margarida Martins, “mas só em épocas festivas, como dou a associações, à Refood, à Zero Desperdício”.

“Sim”

Apenas uma palavra. Foi a resposta de Fernando Medina à SÁBADO à pergunta se mantinha a confiança em Margarida Martins

“NO INÍCIO TENTOU [NÃO PAGAR]. ‘OLHA, VOU LEVAR ESTE CHOCOLATE.’ NÃO, O CHOCOLATE É PARA PAGAR”

É a mesma coisa? “Ela entra aqui e tem de pagar como todos os outros. Se eu achar que lhe devo oferecer alguma coisa, é de minha livre vontade. Já aconteceu nos anos dela, no Natal, ou se hoje tiver que oferecer alguma coisa porque ache que possa haver alguma situação, não de contrapartida, mas alguma ocasionalidade que possa acontecer, não tenho problema.” Já ofereceu alguma coisa à ministra da Saúde, que costuma vir cá todos os sábados? “Não. Não tenho confiança para tal. Se tivesse, provavelmente dava.”

Os €100 mil de Gonçalo Lobo

Numa das idas ao mercado, a 19 de junho, Margarida Martins teve consigo um ajudante que foi um faz-tudo. Vimo-lo a carregar sacos, a empurrar o carrinho das compras, a ir buscar mercadorias, a tirar fotografias e até a dar-lhe boleia.

Trata-se de Gonçalo Lobo. Quando Margarida Martins saiu da presidência da Abraço, no fim de 2013, ele assumiu o lugar dela, mas não só. Uma das primeiras decisões de Margarida Martins na junta foi contratar o homem que vimos a carregar-lhe os sacos. Um ajuste direto assinado a 3 de janeiro de 2014 para três anos. Objeto: prestação de serviços na área da ação social. Valor: €25.200, que foi alterado em agosto para €39.700. Não foi o primeiro. Ainda hoje trabalha para a junta de Arroios: teve sucessivos ajustes diretos de “consultorias de ação social” e “ações de sensibilização”. Total: €99.480 em seis anos (2014-16 e 2019-2021).

Pelo meio, no triénio 2015-2017, teve três ajustes diretos para consultorias iguais com a junta de São Domingos de Benfica, gerida por outro socialista: António Cardoso (que não respondeu à SÁBADO). Foi ainda para vogal suplente do Jardim de Infância dos Anjos, IPSS em Arroios.

Duas das consultorias de Gonçalo Lobo com Arroios são peculiares. Não foram para ele, mas para duas empresas que acabara de criar. A 21 de janeiro de 2019 foi contratada a Jasmim Manga, que criara três meses antes, e a 2 de março de 2021 foi contratada a Lobo Consulting, que criara um mês antes. Ou seja, Arroios contratou a Jasmim Manga em 2019, Gonçalo Lobo em 2020 e a Lobo Consulting em 2021. Parecia tudo diferente, mas era tudo o mesmo.

À SÁBADO, Gonçalo Lobo diz que “não há nada de anormal nisto” e que se trata da sua “vida pessoal”. Quando lhe começámos a falar de São Domingos de Benfica desligou abruptamente a chamada e não voltou a atender. Não respondeu às restantes perguntas que lhe enviámos.

A 3 de julho conhecemos outra personagem destes enredos: Domingos Quaresma, que dirige a higiene urbana de Arroios e foi também um faz-quase-tudo à presidente da junta. Mas com dois detalhes: estava de serviço (e com colete da fiscalização) e foi buscá-la e levá-la a casa num carro da junta. Entre outras coisas.

O fiscal e o carro da junta

Conhecemo-lo às 12h50 quando Margarida Martins saía do mercado. Ao seu lado ia o fiscal do mercado, César Lopes, e Domingos Quaresma, que saiu do seu posto, na rua Aquiles Monteverde, a dois quilómetros, para carregar as compras da presidente. E não só. “O meu motorista…”, disse Margarida Martins para César Lopes.

Junto ao carro da junta, Domingos Quaresma perguntou se “isto é para levar para lá, não é?” E disse a presidente: “Não. É para deixares em minha casa.” E ele: “É o que eu estou a dizer, é para lá para casa.” “Depois vais-me buscar para me levar para casa.” “Depende da hora…” “Deve ser lá para as três e picos…” Aqui, César Lopes, sempre de mãos atrás das costas, fez uma piada: “Antes da hora do jantar…” E Quaresma: “Antes da hora do jantar, o caraças. Às quatro e meia é que saio. Ou antes ou depois.” Como combinado, nessa tarde e no carro da junta, a SÁBADO presenciou a ida de Domingos Quaresma à casa de Margarida Martins.

Uma semanas depois, a 10 de julho, a presidente chegou ao mercado às 11h34 largada pelo mesmo carro. Depois, dia 17, já à saída, às 11h32, a mesma cena à porta (o à-vontade das conversas indicia não ser a primeira vez que acontecem), mas desta vez com uma nuance. Primeiro, vimos Domingos Quaresma a empurrar um carrinho de compras até ao carro. Um minuto depois apareceu Margarida Martins. “Depois às quatro e meia levas-me.” E a seguir:

[MARGARIDA MARTINS PARA UM FISCAL APÓS COMPRAS]: “DEPOIS VAIS-ME BUSCAR PARA ME LEVAR PARA CASA”

“Tens é de pôr esta carne no frigorífico.” Respondeu Domingos Quaresma: “Quando lá chegar já vou pôr.”

A tradução para este diálogo é a seguinte: Margarida Martins não ia para casa – o seu Facebook informa-nos que aos sábados almoça quase sempre fora –, os sacos seriam guardados e depois levados por Domingos Quaresma, quando este saísse do trabalho, às 16h30.

Mas guardados onde? Na rua Aquiles Monteverde, no espaço de higiene urbana da freguesia (onde ficam os carros dos varredores e estes têm os vestiários). Fica lá o tal “frigorífico” para conservar as carnes de Margarida Martins. Depois do expediente, Domingos, como a SÁBADO testemunhou, saiu do local às 16h39 carregando os sacos até outro carro, um BMW descaracterizado, ano 2000, que tinha uma folha com o brasão da junta em cima do tablier. Foi até à casa de Margarida Martins, de onde saiu às 17h10.

Domingos Quaresma não respondeu às mensagens da SÁBADO via Facebook e Messenger. Ricardo Sá Fernandes, advogado de Margarida Martins, disse à SÁBADO que “regularmente [Margarida Martins] efetua as suas compras” no mercado, “pagando os produtos que adquire”. Sobre Domingos Quaresma, diz que “no exercício das suas funções, desloca-se a todos mercados da freguesia de Arroios, por vezes acompanhada de diversos trabalhadores da junta de freguesia para avaliação do funcionamento e higiene dos mercados. Quanto ao mais, são factos da sua vida pessoal e privada, onde não aceita qualquer intromissão”.

A dívida à Segurança Social

Candidata a um terceiro mandato em Arroios, há um dado desconhecido do público que neste domingo, 26, vai a votos: Margarida Martins deve €47 mil à Segurança Social. Em março de 2018 aquela entidade enviou à junta de Arroios uma solicitação para penhora de 1/3 do vencimento de Margarida Martins, documento a que a SÁBADO acedeu. Também a sua ca- sa foi penhorada como garantia. Ricardo Sá Fernandes diz à SÁBADO que a autarca “em 2017

Q intentou ação contra a Segurança Social para impugnação dos valores reclamados por esta, aguardando-se julgamento e decisão”. Ou seja, “a sua situação contributiva está regularizada” e “existe apenas um diferendo pendente”.

De onde vem o processo? Da sua presidência na Abraço (1992-2013). A SÁBADO pediu para consultar o processo no Tribunal Tributário de Lisboa, mas em despacho de 24 de junho de 2021 a juíza Raquel Firmino Leal recusou. Alegou que os autos continham dados fiscais que seriam violados e que “não se encontra suficientemente explanado o interesse [público] atendível” de aceder a um processo que envolve um titular de órgão público, recandidato ao mesmo, referente ao exercício de cargo em IPSS financiada pelo erário público. A SÁBADO recorreu da decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul, aguardando o desfecho.

Em causa estará uma alegada falsa baixa médica de vários meses, mais de um ano, detetada pela Segurança Social. Ricardo Sá Fernandes diz à SÁBADO que “no período em causa Margarida Martins foi submetida a seis intervenções cirúrgicas, sendo regular a sua situação de baixa”.

Não é a primeira vez que a Segurança Social anda no encalço de Margarida Martins. A SÁBADO consultou dois relatórios na Inspeção-Geral da Segurança Social particularmente duros.

Obras de arte e o salário de luxo

O primeiro, de 22 de dezembro de 1999, começou com uma denúncia de má gestão feita por um colaborador da Abraço na Madeira, que disse aos inspetores que as suas divergências com Margarida Martins “aumentaram quando um dia, de visita à sua casa nova, verificou que na parede de uma das salas

INSPEÇÃO À ABRAÇO: “MARGARIDA MARTINS APROVEITA-SE DO CARGO PARA ATUAR CONFORME OS SEUS INTERESSES”

estava exposta uma moldura em talha de pau-rosa, de dimensões de cerca de 3x2 m, na qual mandou colocar um espelho, que tinha sido oferecida por um comerciante à Associação”. Margarida Martins confirmou, dizendo que “a moldura em questão lhe agradou” e que a trocou por duas molduras. Esta semana, questionada pela SÁBADO sobre quantas obras da Abraço ficaram para ela, Margarida Martins respondeu: “Nenhuma.”

A inspetora Albertina Santos Freire foi dura: “A presidente da Abraço gere o património da Associação

MP

Os relatórios da Segurança Social foram remetidos ao Ministério Público, mas não há noticia de investigação. O MP não respondeu à SÁBADO

como bem entende, a título pessoal. (…) Aproveita-se do seu cargo para, propositadamente e abusivamente, atuar conforme os seus interesses (...) lesando o património da Associação.” Falava em “abuso de poder” e “peculato”. Outros casos eram aflorados referentes a “despesas da sua iniciativa que não soube explicar como foram as verbas imputadas na contabilidade da Abraço”.

O caso mais sonante do relatório era o dos salários. A 15 de junho de 1996, lê-se, realizou-se uma Assembleia-Geral da Abraço que a inspetora diz ter sido estatutariamente ilegal e onde as remunerações da Direção foram fixadas em 3.000$/hora, de que resultaram valores altíssimos (ver caixa, já com os valores em euros e atualizados a preços de hoje). Era “uma autoatribuição remuneratória, sem qualquer controlo e sujeito ao livre arbítrio, já que cada um elabora o seu próprio mapa de horas e o entrega mensalmente na contabilidade, limitando-se este serviço a efetuar o pagamento sem questionar”.

O relatório diz que em alguns mapas havia dias com 20 horas de trabalho, “uma clara impossibilidade de um ser humano sobreviver e resistir a tantas horas consecutivas de trabalho”. Em dezembro de 1998, Margarida Martins “trabalhou em média 12 horas diárias, incluindo fins de semana e feriados, só com a interrupção no dia 20 e dia de Natal.”

A inspetora escreveu que esta autorremuneração era “acintosa, até pelo método adotado”. E falou em “abuso de direito” e “enriquecimento sem causa”, daí que os dirigentes “estão obrigados a restituir as verbas já recebidas”. Nesta ordem de ideias, tomarmos um valor médio de €5.000/mês desde julho de 1996 até dezembro de 1999, Margarida Martins recebeu 210 mil euros que teria de devolver à Abraço.

A SÁBADO perguntou a Margarida Martins se chegou a fazê-lo. Resposta: “Desconhece-se qualquer inspeção ou processo relativo a salários indevidamente pagos.” Perante a nossa estranheza e após insistência, a resposta foi: “Todas as recomendações da IGSS foram acolhidas.” W

Sumário

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