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Entrevista

Apesar de discordar da ideia de destruir monumentos, a escritora, de 58 anos, defende que Portugal tem de pedir desculpas pelo passado de opressor. Está a preparar novo livro e foi nomeada para o Femina.

Por Vanda Marques (texto) e Bruno Colaço (fotos)

Isabela Figueiredo critica a excessiva obediência dos portugueses

“Considerava-se que a cultura negra era inferior. Logo, tinha de ser anulada e substituída pela europeia”

Viver sozinha dá-lhe o tempo para observar o mundo. “As pessoas que vivem sozinhas com os animais pensam durante muitas horas e observam muito. Sou curiosa.” Além disso, explica que não está aqui para agradar ninguém, nem para ficar caladinha. Isabela Figueiredo, escritora que acaba de ser nomeada para o Femina Estrangeiro – prémio francês que já distinguiu autores como Amos Oz, Julian Barnes ou Ian McEwan –, com o romance Caderno de Memórias Coloniais [2009], acusa os portugueses de serem demasiado obedientes. Com três livros publicados, prepara-se para terminar o próximo, que será sobre animais e trabalho. “São assuntos muito importantes para mim.” Escolhe sempre temas difíceis, como o colonialismo – que retrata não apenas a época dourada, mas também a opressora – ou a vida dos gordos, que são sempre discriminados. “Eu sentia-me negra.”

Foi nomeada para o Prémio Femina Estrangeiro, com Caderno de Memórias Coloniais. Como se sente com a nomeação – é um reconhecimento da sua obra?

Não sinto nada de especial. É bom ser nomeada, mas é só uma nomeação. É indiscutível que é o reconhecimento de uma obra, mas não me foi atribuído nada e não influencia em nada a minha criação. Se eu não fosse nomeada para prémio algum, continuaria a escrever aquilo que acho que tenho de escrever. Digo sempre que não sou uma escritora para receber prémios.

Porquê?

Não sou uma pessoa conveniente, que diga as coisas que agradam ao sistema cultural, político, aliás, não agradam a nenhum. Não agradando ao sistema, não sou uma candidata a prémios e distinções. Não tenho padrinhos. Falo livremente sobre toda a gente e isso torna-me uma pessoa perigosa e pouco agradável, por ser livre demais. Por exemplo, a minha posição quanto à forma como está a ser gerida a pandemia tem afastado pessoas de mim. Mas dizer o que penso faz parte da minha identidade e não pretendo mudar isso. Receber uma nomeação ou um prémio não muda a minha relação com a escrita, que é bastante missionária – escrevo com sentido de missão.

De missão?

Acho que tenho uma visão do mundo e não sou parva de todo. Tenho alguma coisa a dizer. Portanto, com prémios ou sem prémios continuarei a escrever. Há sempre questões novas para escrever. Toda esta nova realidade da pandemia me trouxe novas dúvidas.

Como por exemplo?

Por exemplo, tenho-me questionado muito sobre obediência e submissão. E ainda sobre quem são os portugueses. Sempre pensei muito sobre quem são os portugueses e acerca

do poder, mas a pandemia tornou esta reflexão tão real, tão palpável. Com a pandemia vimos os portugueses cumpridores, obedientes, com excesso de zelo. E com falta de questionamento, sobretudo na aceitação de regulamentos, sem questionar a sua eficácia e pertinência. Eu questiono a eficácia, a sensatez – questiono a ordem. Além disso, quero que me expliquem as coisas como se eu fosse uma adulta, não como se eu fosse uma criança. Acho que os portugueses aceitam ser tratados como crianças, como subordinados. Não pretendem saber as razões lógicas e factuais, gostam de ser obedientes. Acho que em Portugal os clubes de bondage devem estar cheios todos os dias, com pessoas a pedirem para serem submetidas. Eu já sabia dessa excessiva obediência.

Porquê?

Sempre me senti pouco portuguesa. Sempre achei que os portugueses eram excessivamente comedidos, excessivamente sérios, com pouco sentido de humor, pouca tolerância, pouca maleabilidade. Sempre senti isso. Só que uma coisa é sentir, outra é ver isso a tornar-se palpável todos os dias, como aconteceu agora com a pandemia. Aliás, o caráter português de obediência explica, de alguma forma, que tenham sido bons colonialistas, porque exigiram dos outros povos essa submissão e obediência, que consideram uma característica cultural relevante. Não o fizemos mais mansamente do que os outros. Ou pelo menos eu, enquanto criança, não vi. Eu olhei sempre para o mundo com uma grande perplexidade: como é que isto é possível?

Que histórias recorda desses momentos em Moçambique?

Milhentas – a diferença entre mim e as outras crianças, entre o que eu podia fazer e o que as outras crianças podiam. Eu podia andar no carrossel, as crianças negras não. Eu tinha sapatos, as crianças negras não

“Em Portugal os clubes de bondage devem estar cheios, com pessoas a pedirem para serem submetidas”

tinham sapatos. Eu andava bem vestida, as crianças negras andavam rasgadas. Era a pobreza, a miséria e a submissão dos negros perante a diferença social dos brancos portugueses. Isto era constante. Nunca entendi isso. E a explicação dos meus pais não me satisfazia.

Questionava-os?

Perguntava-lhes porque é que somos diferentes? Os meus pais diziam: “Porque são pobres.” Eu perguntava: “Porque são pobres?” A resposta: “Bem, porque não vão à escola, porque são diferentes de nós.” Eles nunca tiveram uma explicação racional para me dar. Eu sou muito racional. A questão não era a da inferioridade da raça, mas da cultura. Considerava-se que a cultura negra era inferior. Logo, tinha de ser anulada e substituída pela europeia. Lourenço Marques não era uma cidade africana, era uma cidade europeia. Nós chegámos lá e impusemos uma civilização.

É por isso que no Caderno de Memórias Coloniais demonstra perplexidade perante o comportamento do seu pai?

Adorava o meu pai. Não podemos ver a pessoa que amamos a ter um comportamento que nos escandaliza. A forma brutal e agressiva como ele se relacionava com os empregados... deixava-me assustada. Muitas vezes olhava para os empregados com um olhar cúmplice. Eles respondiam, ao meu olhar, com um encolher de ombros. Isso marcou-me. Eu ficava do lado deles, não do lado do meu pai. Isso não consigo apagar da minha memória, se conseguisse, viveria melhor. Mas escrever o Caderno ajudou-me bastante. Só tive coragem de o escrever depois de o meu pai morrer.

Discute-se mais o passado, mas há quem queira derrubar estátuas ou retirar murais da Assembleia da República (AR), como a deputada Joacine Katar Moreira. Concorda?

Compreendo e aceito esta época em que vivemos, porque acho que todas as épocas revolucionárias são de excesso. Acho uma parvoíce que se diga que o Padrão dos Descobrimentos deva sair dali. Acho que não. Em relação às pinturas da AR, até podem sair, mas não podem deixar de existir. A História não pode ser apagada. Mas compreendo que é preciso questionar de forma muito irreverente estas coisas muito instituídas.

Quais são?

De que somos um povo glorioso e corajoso. O que não é mentira – temos de facto uma História bastante corajosa e gloriosa –, isso não pode ser apagado. Mas temos de contar os dois lados da História. Nada na vida tem apenas um lado. Agradeço à Joacine e a todos os ativistas que façam o seu trabalho. Acho que é importante, porque dão uma picadela aos costumes instituídos e obrigam os portugueses a questionarem-se sobre o que são. Acho que com o tempo vamos fazer as pazes com o passado colonial. Temos de aceitar de forma muito crua e nua o que fizemos. Temos mesmo de pedir desestá culpas. É uma coisa que os portugueses não querem ouvir.

Porque é que acha que temos de pedir desculpa?

Precisamos de fazer essa psicanálise coletiva do que foi o nosso passado. A nossa autoestima enquanto portugueses depende muito da glória dos Descobrimentos – que eu não nego, porque fomos realmente ousados, e há glória nisso –, mas acho que a nossa autoestima depende mais de nos aceitarmos verdadeiramente enquanto opressores também.

Sempre escreveu sobre temas difíceis, outro foi o excesso de peso com o romance

A Gorda.

O excesso de peso fez-me sofrer muito ao longo da vida. Eu senti-me um monstro, uma pessoa deficiente que não tinha direito a ser igual aos outros. Fez-me sentir negra. Eu sei o que sofrem as pessoas gordas, que é excluírem-se à partida porque sabem que as vão excluir. Repare, esta cadeira é limitadora para um gordo. Isto aconteceu-me algumas vezes na minha vida – chegar a uma cadeira e ver as pessoas a olharem para mim. É um constrangimento, uma limitação, uma vergonha. O mundo não feito para os gordos. O que é interessante é que os gordos não o são por opção. É a sua natureza. Eu fiz um sleeve gástrico, eu cortei metade do meu estômago, e eu continuo a ser gordinha. E como pouquíssimo. Mas os meus genes mandam em mim. No entanto, acha-se sempre que os gordos são preguiçosos e não têm cuidado. Claro que há comportamentos de adicção de comida, mas isso não pode ser generalizado. E mesmo essa adicção merece tanta atenção como outra qualquer.

O romance A Gorda vai na sétima edição. A que se deve o sucesso?

Escrevo de forma muito inspirada e apaixonada, acho que isso fica lá. O ato artístico é de esvaziamento de todas as minhas pulsões e os meus fantasmas. Os leitores dão-me retorno desses sentimentos de arrebatamento que lhes causei, acho que tem a ver com a minha autenticidade. Há leitores que dizem coisas maravilhosas: “O seu livro fez-me fazer uma coisa que eu não estava a pensar e mudou a minha vida – resolvi contactar uma pessoa, que tinha ficado na minha vida lá para trás encalhada, e resolvi a minha vida.” Isto é mudar o mundo. Isso é uma verdadeira adicção do escritor.

Ainda escreve no seu blogue, o

Novo Mundo?

Escrevia no blogue quando vinha da escola, e era como se libertasse tudo ali. Mas há cinco anos deixei de ser professora, sou escritora e agora tenho coisas para escrever porque tenho contos encomendados, tenho encomendas de trabalho.

Gosta de ter encomendas?

É sempre melhor escrever livremente, mas tenho de ser racional – a encomenda é paga. Portanto, entra rendimento. Portanto, tenho de me vender. Todos nós temos um preço. Gosto mais de viver dos direitos de autor dos meus livros do que estar à espera do rendimento da encomenda. Mas também as faço com autenticidade e gosto. O que é que eu estou a fazer no mundo se estiver caladinha, sem dizer o que me move, o que me toca?

Sumário

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