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José-Augusto França (1922-2021)

Escritor e crítico, fundou o primeiro curso de História de Arte em Portugal. Morreu dia 18, na casa de saúde francesa onde vivia desde o AVC que sofreu em 2018. Tinha 98 anos

Socialista convicto, estudioso do marxismo, estava em Paris, já com dois doutoramentos franceses no currículo – que de nada lhe valiam na sua terra, embora os seus objetos de estudo tenham sido sempre temas portugueses – quando estalou a revolução. No dia seguinte, a 26 de abril de 1974, entrou para a Universidade Nova de Lisboa e logo propôs o curso de História de Arte, com mestrado e doutoramento incluídos, inexistente até então. Gizou-o com Fraústo da Silva, em Armação de Pêra, onde ambos tinham casa, e foi aprovado em três tempos, para espanto de todos.

“Eu não estava habituado a essa coisa de bastidores da função pública”, contou em entrevista a José Jorge Letria em 2014, justificando a rapidez inédita da aprovação oficial. António Brotas, que era o diretor do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, tinha de a assinar, mas não o recebeu da primeira vez e José-Augusto França logo disse ao seu reitor: “Assim não brinco.” Ameaçou não voltar, mas antes praticamente invadiu-lhe o escritório: “Se eu não tivesse tido a má-criação de insistir, a coisa não tinha existido.” Esteve lá nove anos – “Pus a coisa em velocidade de cruzeiro” –, até voltar a Paris, para dirigir o Centro Cultural da Gulbenkian.

Nascido em Tomar a 16 de novembro de 1922, José Augusto Rodrigues França chegou aos 5 meses a Lisboa, onde o pai, ex-jornalista, encontrou sucesso como comerciante. “Filho único, menino mimado, doentinho muitas vezes”, como recordava, iniciou a primária numa escola pública do Largo do

Leão, mas um dia a professora bateu-lhe, o pai não gostou e transferiu-o para um colégio. Também não correu bem, mudou de novo e tornou a mudar, chegando a ter aulas em casa, mas lá entrou no Liceu Gil Vicente, onde, ao longo de sete anos, se foi tornando brilhante. Ajudava ter muitos livros em casa. “Eu li tudo. Aproveitei esses anos pré-liceais de menino doentinho para devorar todo o romantismo português”, área que se tornaria uma das suas especialidades, a par da olisipografia e da arte.

“APROVEITEI OS ANOS DE MENINO DOENTINHO PARA DEVORAR TODO O ROMANTISMO PORTUGUÊS”

Aos 13 anos, sabendo da invasão da China pelos japoneses e da Etiópia por Mussolini, ganhou consciência política. Aos 17, quando começou a Segunda Guerra Mundial, já era antifascista encartado, pelo meio escapando, com o apoio do pai, às fileiras da Mocidade Portuguesa. Foi mau aluno na Faculdade de Letras, onde tirou Ciências Histórico-Filosóficas em 1944, e descobriu a arte numa viagem a Paris, em 1946, ligando-se pouco depois aos surrealistas – António Pedro, O’Neill, Vespeira – e publicando o primeiro romance – já com o hífen, inspiração francesa, a ligar os nomes próprios –, Natureza Morta, em 1949. Começou a fazer crítica de arte nos jornais e a dirigir revistas literárias nos anos 1950, mas no fim dessa década ganhou uma bolsa do Estado francês e Paris – onde, após um primeiro casamento falhado em Portugal, se casou em 1972 com a também historiadora de arte Marie-Thérèse Mandroux – passou a ser a sua casa, mantendo outra em Lisboa. Autor de referência, publicou mais de 100 obras – de ficção e ensaísmo crítico e histórico, sobretudo – e em 2006 recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. W

A Semana

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2021-09-23T07:00:00.0000000Z

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