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O REGRESSO DE WOODY ALLEN

Após ser acusado de abusar da filha na infância, Woody Allen volta com Rifkin’s Festival. Passa-se em San Sebastián e traz as suas obsessões habituais.

Por Pedro Marta Santos

Acusado de abusar da filha, o realizador só conseguiu financiamento para o novo filme, Rifkin’s Festival, na Europa. Esta semana estreia nos cinemas nacionais

de este filme existir depois da estreia no início do ano de Allen vs. Farrow na HBO é, para todos os efeitos, um milagre. Woody Allen foi cinematograficamente silenciado, culturalmente cancelado e socialmente banido. Portanto, a sua sobrevivência saúda-se.

Chamar documentário a Allen vs. Farrow seria um doloroso pleonasmo, mas esse auto de fé da família de Mia Farrow, a ex-companheira de Woody, teve o impacto que desejava: pregar uma letra escarlate no peito do nova-iorquino e completar a exclusão do autor como persona non grata no circuito literário (a sua autobiografia correu sérios riscos), bem como no eixo da produção audiovisual – já quase não há financiamentos para os filmes de Allen nos EUA, e Rifkin’s Festival , que esta semana estreia em Portugal, existe apenas graças à boa vontade do Festival de Cinema de San Sebastián e de plataformas europeias como a francesa Orange ou a Televisió de Catalunya.

Em Allen vs. Farrow não há esforço de objetividade, cruzamento de fontes ou sequer pontos de vista. Há uma construção narrativa de alvo único: acusar, julgar e condenar na praça pública o cidadão Allan Stewart Konigsberg (o nome verdadeiro de Woody) por agressão sexual à filha, quando esta era criança. Será ele culpado? Talvez nunca se saiba ao certo: investigado criminalmente, nunca foi acusado pelas instâncias judiciais.

De mediocridade, porém, é que jamais o poderão acusar. Numa carreira como realizador de mais de meio século (a estreia, o hilariante Inimigo Públi

Ir ver o novo Allen era uma das alegrias da cultura mainstream para duas gerações, mas o cineasta foi perdendo o fulgor desde os anos 90

co, data de 1969), Allen tem uma obra de uma regularidade, consistência e brilhantismo cíclico apenas comparável aos maiores vultos.

Com uma longa-metragem estreada todos os anos durante décadas, ir ver o novo Allen foi uma das alegrias da cultura mainstream para duas gerações, como regressar a casa de um amigo de infância. Os imbatíveis one-liners (“de cada vez que ouço Wagner, tenho vontade de invadir a Polónia”; “não tenho medo da morte, só não quero estar presente quando ela aparecer”), o carinho formal alternado com as experiências de registo (da cena de cama em relato desportivo de Bananas ao falso docudrama de Maridos e Mulheres) e a maturidade obsessiva dos universos proporcionaram triunfos artísticos em dúzia e meia de filmes, acrescidos de um número impressionante de obras-primas: Annie Hall (1977), Manhattan (1979), Zelig (1983), A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Ana e as Suas Irmãs (1986), Crimes e Escapade

Um novo filme de Woody Allen, mesmo que menoríssimo, como é o caso, é mais apetecível do que grande parte da carta deste passável 2021

las (1989), Match Point (2005), Meia-Noite em Paris (2011).

Com o realizador prestes a completar 85 anos, Rifkin’s Festival é a 49ª longa-metragem escrita e dirigida por Woody, e o resultado é, de novo, uma deceção. Desde o fim dos anos 90 que o tal brilhantismo foi diminuindo, com pulsões cada vez mais distantes entre si. Por vezes, tem havido mesmo o risco do pastiche: já não há rima e fulgor nos conceitos e temas, só redundância e repetição.

Rifkin’s Festival não escapa à face dececionante desse eterno retorno: Allen abordara melhor as mesmas preocupações (a viagem interior dos seus alter egos, o mimetismo vida/arte, o onirismo amoroso, o ersatz

bergmaniano, a hipocondria) em Interiores (o 8 e ½ de Woody), As Faces de Harry ou Vicky Cristina Barcelona, para não escavarmos mais fundo.

Na itinerância por San Sebastián, durante o festival, de Mort Rifkin, um escritor a acompanhar a mulher, Sue, diretora de marketing e promotora de Apocaliptic Dreams, o último opus

de Philippe, jovem cineasta francês (Louis Garrel) que nela provocará desejos passionais, a cinefilia é pesada e impõe-se – de Welles a Truffaut, passando pelo inefável Claude Lelouch, as referências não param, atropelando-se. O humor é por vezes fastidioso, pecado capital num Woody: as cenas de evocação de O Acossado e Jules e Jim são particularmente penosas, com derivativos turísticos de Wallace Shawn, aqui como pobre duplo de Allen, e de Gina Gershon, que está tão longe de Scarlet Johansson ou Cate Blanchett como Rifkin’s Festival de um Allen refrescante ou vintage. Ainda assim, um novo Woody, mesmo que menoríssimo, é mais apetecível do que grande parte da carta deste passável 2021. W

Sumário

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2021-09-23T07:00:00.0000000Z

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