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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

VOU CONTAR UMA PIADA JUDAICA: dois amigos judeus caminham pela rua, sem dinheiro no bolso e com a fome a apertar. Passam por uma igreja, onde lêem o seguinte cartaz: “Converta-se ao cristianismo e ganhe 100 euros.” A tentação é grande, os amigos meditam. Será que devemos? Será que podemos?

Um deles convence o outro a entrar: é tudo a fingir, o que conta é a fé verdadeira que sentimos cá por dentro. Vencido, o amigo entra para ir buscar o dinheiro.

Passa uma hora. Passam duas. Três. No final do dia, o amigo sai da igreja e o que ficou cá fora pergunta, desesperado: “Porque demoraste tanto tempo? Trouxeste os 100 euros?”

O recém-convertido olha para o amigo e, com ar de náusea, responde-lhe: “Vocês, judeus, só pensam em dinheiro.”

É uma boa piada. Que, sem surpresas, me foi contada por um amigo paulistano (e judeu).

Pena que esta piada seja assunto sério com as nossas “elites” nacionais. Enquanto cá andam, partilham da mesma fome. Mas bastam umas temporadas em Bruxelas para olharem para a velha tribo com a náusea dos recém-convertidos. Como se nunca tivessem feito parte dela.

Elisa Ferreira é apenas um caso. “É penoso ver que Portugal, com tantos anos de apoio, ainda está entre os países atrasados”, disse-nos a comissária. Um extraterrestre, confrontado com estas palavras, pensaria que a dra. Elisa nunca por cá andou, com responsabilidades em dois governos e na Assembleia da República. É uma estranha amnésia.

Se este processo degenerativo continua, ainda veremos a senhora comissária a declarar em público que gostava um dia de vir a Portugal, para conhecer o País. “Dizem que é encantador e que se come muito bem”, embora os nativos, coitados, persistam em usar o dinheiro europeu para construir rotundas. “É dos políticos que têm”, dirá, encolhendo os ombros.

DURANTE MESES,

o nível da conversa andou elevado. Falava-se de testes, rastreios, vacinas. Matrizes de risco, Rt’s, incidências. E o cidadão incauto, esmagado por tanta erudição, até acreditava que estava em pleno século XXI, com a ciência firmemente ao volante.

Pobrezinho. Mal ele sabia que, em matéria pandémica, a ciência do Governo é outra. E resume-se a duas máximas: quando os casos descem, abrimos; quando os casos sobem, fechamos. E depois abrimos. E depois fechamos. Complicar para quê?

ESTOU EM PLENA MUDANÇA DE CASA.

Pergunta fatal: que fazer aos livros? Levá-los todos para o novo poiso ou, pelo contrário, aproveitar o momento para a grande poda da meia-idade?

Sejamos francos. Se tiver a sorte, ou o azar, de chegar aos 90, estou a meio do caminho. Seria ilusório pensar que terei todo o tempo do mundo para ler todos os livros do mundo. Essa era a ilusão dos 20 anos, talvez dos 30, quando ainda os acumulamos com a gula dos imortais. A gula continua, mas já não somos imortais.

Começo por algum lado. Adeus, romances fracos, ou assim-assim, ou até simplesmente bons. Adeus, livros de jornalismo ou política que responderam aos apelos do tempo e que desapareceram com o tempo. Adeus, autores reverendíssimos, cuja mediocridade só se tornou visível para mim demasiado tarde. Adeus, ofertas gentis, que compraram espaço nas minhas estantes porque vieram assinados e dedicados. Adeus, livros por ler que nunca verdadeiramente quis ler, mas que aqui ficaram como símbolos do “quem sabe?”.

Levarei os autores da infância. Os livros de poesia, cinema e arte que quero ler ou reler, consoante os casos. Os autores a quem presto visitas sazonais. As companhias diárias. Os amigos de todas as horas.

E, na história, na filosofia e na ficção, os meus santos padroeiros – e aqueles que, por enquanto, ainda nem começaram os respectivos processos de beatificação.

No fundo, persigo o sonho de chegar à velhice com uma prateleira de livros, não mais. Há quem pense que as bibliotecas perfeitas se fazem por adição. Um erro. Fazem-se por subtracção. W

Sumário

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2021-06-24T07:00:00.0000000Z

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