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Estalo de génio

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

PARA IR DIRECTO AO ASSUNTO,

Portugal é um país extraordinário. Não me interpretem mal. Não considero Portugal melhor que qualquer outra nação. Quero apenas dizer que é um país a tal ponto único que merece a nossa total admiração, o nosso justo louvor.

Quem duvida ponha o dedo no ar. Todos? Ainda bem, porque o objectivo destas crónicas é mudar um pouco o curso dos vossos pensamentos, é quebrar barreiras e estereótipos, para que não pactuem com os lugares-comuns sobre a identidade nacional, o destino português, a portugalidade.

A fonte de onde dimana a minha convicção, e que me permite com segurança absoluta afirmar que Portugal é um país que desafia a imaginação mais fértil, não podia ser mais óbvia: os nomes das suas pequenas e médias empresas.

É preciso observar bem estes negócios, compreendê-los bem, para bem compreender a alma do capitalismo português. O nosso país pode não ter grandes multinacionais, mas tem empresas com nomes como “Jardins da Roupa” (lavandaria), “Catedral do Pão” (pastelaria em Castelo Branco), “Scala de Lamego” (pastelaria), “Mansão da Carne” (grupo “Talhos Pardais”) ou “Gelitália” (comércio de produtos para gelados), que lembra a palavra genitália, um arcaísmo em desuso que esta empresa, situada no Granja Park, em Campo Raso (Sintra), recuperou foneticamente.

Em Portugal não há uma Apple, uma Microsoft ou uma Disney, mas, tratando-se de um país de engenheiros e doutores, tem um “Engenheiro da Picanha” (restaurante de Sendim, conhecido pela arte de bem grelhar carnes), um “Mestre Migalhas” (padaria), um “Dr. Cano” (especialista em desentupimentos) e um “Doutor Transportes” (mudanças, armazenamento, logística).

Não há Nestlés nem McDonald’s, mas existe um restaurante “Põe-te na Bicha” (gay friendly, segundo o site

Tripadviser) ou um “Pratinho Feio” (Madragoa).

Os nomes das empresas – que dúvida? – também são cultura, através deles também se pode explicar e conhecer um país.

No entanto, constata-se uma ausência de estudos consagrados a este tema puramente português.

Porque a triste verdade é que não há antropólogos nem sociólogos que estudem o fenómeno, que o testemunhem e pesquisem (felizmente, ainda há pessoas, como eu, que não desistiram de observar Portugal, de estudá-lo e entendê-lo).

Os académicos de Filosofia, por exemplo, poderiam demonstrar a mistura entre o ser e o nada se conhecessem o restaurante “Aquele Lugar que Não Existe” (Marvila), onde o discurso empresarial se aproxima da epistemologia inexistencialista.

Quem quiser fazer uma etnografia urbana, de resto, não pode fechar os olhos às dezenas, centenas – posso contar – de carrinhas comerciais que desfilam pelas ruas de Lisboa.

Viaturas Ford Transit, Peugeot Partner, Citroën Berlingo que se encontram em toda a parte e que levam a imagem e a marca de empresas como “Cenário Minucioso” (remodelações), “Pinceladas Elegantes” (construção civil), “Eficácia Imperdível” (portões seccionais, automatismos, porta corta-fogos, portas rápidas, portas automáticas de vidro, portas de segurança, fechaduras), “Sempre em Marcha”, “Traçado Veloz” (ambas de remodelações) ou “Cheio de Pressa Unip. Lda. Construímos qualidade” (cujo mote, como se vê, contradiz, em absoluto, o famoso “depressa e bem, não há quem”).

Empresas que reúnem todas as múltiplas sensibilidades, onde as coisas mais diversas e opostas encontram o seu ponto comum e entram em contacto, como “Alicerce Previsível, Construções & Obras Públicas”

(trabalhos de pavimentação, calcetamento, drenagem, abertura de valas, reparação de ruas) versus “Surpresas Inesgotáveis” (reparações).

O empresário português, convenhamos, é um repentista que sente necessidade de patentear os seus dotes para o trocadilho e para os jogos de palavras – como na lavandaria e engomadoria “Passe Aqui”, na lavandaria self-service “Soap Opera”, na empresa de equipamentos para apneia do sono “D’Ar Saúde” – ou para a rima imprevista, como na “Tintas ComPinta” (Mesão Frio).

Na escolha dos nomes destes negócios há alguns elementos pessoais que são intransferíveis e que exprimem o ego do seu proprietário, como na “O que o seu marido não faz, José Martins faz” (construção civil).

Qualquer português que se preze devia orgulhar-se do restaurante “Cavaco & Soares” (Amadora), pois constitui um incentivo a uma convivência civilizada entre famílias políticas.

É ainda curioso notar que, no meio de uma sociedade pesada de materialismos, os capitalistas portugueses dão primazia ao onírico, em detrimento do lógico e do racional, de que “Sonhos à Maneira”, “Boutique dos Sonhos”, “Semente dos Sonhos”, “Planeta dos Sonhos”, “Arca dos Sonhos”, “Trapézio dos Sonhos”, “Alquimia dos Sonhos”, “Sonho do Tejo” ou “Portugal dos Sonhos” falam por si.

Como toda a gente sabe, Portugal tende para o lirismo, é um país de poetas, como o demonstram claramente a “Papagaio Lírico”, a “Geometria Lírica”, a pastelaria “Palavras Sublimes” (Amadora), o café “Sabores do Poeta” (Ramada-Caneças), a empresa de telemensagens “Toques de Poesia”, a “Tasca do Bardo” (Covilhã) ou a empresa de transportes e turismo “A Brisa Nómada”.

Favorecido por uma inesgotável veia poética, que prepondera sobre o seu espírito analítico, o empresário português recorda-nos algo tão simples e ao mesmo tempo tão essencial: a poesia está em tudo!

Está numa notícia de jornal, está numa receita de culinária, está numa frase ouvida no autocarro, está na pastelaria “Gostoso Amanhecer” (Faro), na “Bonito Horizonte” (Vila

Franca de Xira) e na “Caprichos Celestiais” (Mealhada).

Estes nomes têm uma ressonância que não se apaga, dão-nos alento, sabem insinuar-se no ânimo dos consumidores (repare-se na força envolvente de “Cheio de Alma”, empresa de aparelhos de ar condicionado, refrigeração e ventilação do Montijo).

E há outros que parecem saídos de um conto das Mil e Uma Noites, como a “Hora de Génio” (Atouguia da Baleia), empresa de fornecimento, colocação, afagamento e envernizamento de todo o tipo de pisos de madeira.

Ou que despertam em nós o desejo de fugir para além do oceano e viver outras aventuras, numa praia de coqueiros, como a “Piratas do Chocolate” (Amadora) ou a “Piratas ao Leme” (loja de roupa do Barreiro).

Nas pequenas e médias empresas portuguesas, já terão por certo notado, há muitos “senhores” (“Senhor Dentista”, “Senhor Condomínio”, “Senhor Bacalhau”, “Senhor Peixe”, “Senhor Brinquedo”, etc.).

Sempre foi assim e isso inspira segurança e autoridade. Porém, “Só Para Contrariar” (pastelaria snack-bar de Mondim de Basto), a tendência para a anglomania tem crescido e não param de proliferar nomes como “Mr. Obras” (do Grupo Pincelada), “Mr. Jeff” (lavandaria) ou “Mr. Prates” (restauração e hotelaria).

Felizmente, há empresas que nos fazem sentir que ainda não está tudo perdido. Por exemplo, dá gosto imaginar o empresário português a sentir o estalo de génio que deu origem ao nome “Cum Caraças” (conseguem imaginar a reunião burocrática em que se decidiu o nome desta pastelaria de Moscavide?).

Também por isto, Portugal deveria tornar-se uma atracção turística, tornar o seu nome conhecido e respeitado em todas as partes. Porque, no fim de contas, sem elas, o que seria de Portugal? W

Opinião

pt-pt

2021-06-24T07:00:00.0000000Z

2021-06-24T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282583085976911

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