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A AVENTURA DE 36 HORAS DO NOAH

Vestiu-se e saiu de casa e só voltou no dia seguinte. Mobilizou uma centena de populares e agentes da polícia. Até cavalos andaram pelos montes à procura dele.

Por Juliana Nogueira Santos

Quando Rita se levantou na manhã de quarta-feira, dia 16 de junho, o marido já tinha ido trabalhar para o campo. Leandro costuma sair de casa por volta das 5h30 da manhã para ir tratar das culturas, uma atividade que se tornou a principal da família desde que se mudaram de Lisboa para Proença-a-Velha, há pouco mais de um ano. Nessa noite, o filho mais novo do casal tinha dormido com a mãe por causa do temporal e da trovoada. No entanto, tal como o pai, Noah não estava por casa.

Não seria a primeira vez que a criança de 2 anos acompanhava o pai para o terreno ali perto, sempre na companhia da cadela da família, Melina. Enquanto procurava por Noah próximo de casa, por volta das 8h, a mãe terá notado que as galochas azuis da criança também tinham desaparecido e não havia sinal de Melina. Foi aí que ligou para a GNR, a reportar o desaparecimento.

“Por favor ajudem! O nosso filho Noah estamos (sic) desaparecido de casa em Proença-a-Velha. Aparentemente está com a nossa cadela Melina. Quem estiver pela zona que se possa juntar aos grupos de buscar por favor venham”, lia-se numa publicação feita pouco depois no grupo de Facebook “Penamacor and surronding area”, que acompanhava duas fotos da criança. O texto aparecia ainda em inglês, para que chegasse facilmente à comunidade de imigrantes que habita nesta zona. Foi exatamente o que aconteceu com Beccy Dent, uma britânica que se mudou há pouco para a freguesia vizinha de Pedrógão de São Pedro e aí encontrou “uma família”.

“Somos uma comunidade sem egos, onde ninguém tem de fingir ser o que não é para se sentir integrado”, explica. Interessam-se pela natureza, pelos métodos de cultivo biológicos e comunitários, organizam mercados e aulas de ioga e são, muitas vezes, o apoio uns dos outros. “Conheço Rita e Dulce, a avó, porque uma vez a família foi de férias e fiquei responsável por tratar das galinhas deles”, afirma. Por isso, assim que viu a publicação, deviam ser 14h, foi para Proença ajudar no que podia.

O primeiro pedido que Rita lhe fez foi que arranjasse mais pessoas para procurar nos pastos altos e nos poços dos terrenos circundantes. “O tempo estava a passar muito depressa”, diz Beccy à SÁBADO.

A primeira pista encontrada foi uma T-shirt que, segundo o Correio da Manhã, estava seca e dobrada debaixo de uma pedra. Rita confirmou às autoridades que seria de Noah. Por volta das 16h chegaria ao terreno Carolyn Brown, outro membro da comunidade. “Tenho uma filha da idade de Noah, por isso fiquei especialmente emocionada”, conta à SÁBADO. Às 19h, a cadela da família foi encontrada a um quilómetro da casa, junto de uma vedação de arame por onde não teria conseguido

“NESSA NOITE FOI DIFÍCIL DORMIR, PORQUE SABÍAMOS QUE A CADELA JÁ NÃO ESTAVA COM ELE PARA O AQUECER”

passar. “Nessa noite foi muito difícil dormir, especialmente porque sabíamos que a cadela já não estava com ele para o aquecer”, diz Beccy. Por volta das 21h, a polícia terá pedido aos populares que abandonassem o perímetro de busca para que os meios aéreos com capacidade térmica e os cães pudessem atuar.

Nas buscas com a mãe do Noah

Aquilo que começou por ser um esforço desorganizado de populares, depressa se tornou uma operação coordenada com as autoridades. Beccy, antiga funcionária da Guarda Costeira britânica, afirma que tentou organizar tudo como podia. “Usámos o Facebook para chamar mais pessoas, para trazerem cavalos, motas, drones, cães, tudo o que fosse útil. Imprimimos mapas para dar às pessoas e montámos uma estação de descanso com comida e bebida.”

Q Sofia Milheiro, dona da Padaria de Medelim, foi uma das responsáveis por manter a mesa cheia de comida. “Costumam [a família de Noah] vir cá às compras à mercearia, são boa gente. O miúdo é muito ativo”, reitera, afirmando ser totalmente possível que o pequeno tenha em si a energia para esta aventura. “Não pude ir procurá-lo por causa das minhas pernas, por isso dei comida.” Beccy lembra-se de panelas cheias de comida, pão e café quente, bebidas frescas. “Não faltava nada.”

Na quinta-feira, as buscas começaram com as primeiras horas de luz. “Cheguei às 5h30 e os pais já estavam prontos para continuar as buscas. Às 6h30, a GNR começou a dizer o que tínhamos de fazer. Dividiram o mapa em quatro zonas e disseram para procurarmos, em grupos de quatro, em direção a Medelim”, aponta Beccy, que diz que ela e Rita, mãe de Noah, “tinham um pressentimento” que seria essa a direção que ele teria tomado. “As crianças seguem velhos padrões.” A meio da manhã, e já com os drones da polícia no ar, encontrava-se outra pista: pegadas de pés pequenos e descalços na lama. A esperança mantinha-se viva. “Eu e Rita pusemo-nos ao lado das pegadas, na direção delas, e tentámos pôr-nos no lugar dele, perceber o que é que ele podia estar a pensar”, afirma Beccy. Por volta da hora de almoço, foram encontrados uns calções, uma galocha e uma fralda. “Estavam molhados, porque ele deve ter passado o riacho, molhou-se e tirou a roupa molhada.”

Havia quem temesse o pior

Sentada à conversa com Sofia na mercearia, Maria Angélica Salcede descansava depois de ter passado a tarde anterior à procura de Noah.

“Vi na televisão que o menino estava desaparecido e tinha de fazer alguma coisa para ajudar”, aponta a habitante da aldeia onde a criança acabaria por aparecer. A hipótese de crime – que preocupava os populares – foi afastada pelas autoridades. À agência Lusa, o coordenador da Polícia Judiciária da Guarda afirmou que este era “um desaparecimento que deverá ser considerado espontâneo”.

Com a tarde de quinta-feira, veio a previsão de mau tempo. O terreno, que já por si era acidentado, com arbustos altos, buracos de árvores, tornou-se traiçoeiro, até para os que iam equipados com bastões de caminhada. Segundo Beccy, Rita começou a perguntar por que razão é que ainda não havia no ar nenhum helicóptero. “Sabíamos que era complicado se ele passasse mais uma noite na rua, tínhamos de o encontrar.” Nesta altura, as autoridades aumentaram o perímetro de buscas de quatro para 20 quilómetros a partir do sítio das pegadas.

Por volta das 19h45, Noah acabaria por ser encontrado a caminhar na direção contrária à sua casa, num campo que habitualmente é cenário das caçadas de fim de semana. As autoridades afirmaram que o local exato “dista cerca de quatro quilómetros da habitação” da família, mas que era provável que a criança tenha “percorrido uma distância de cerca de 10 quilómetros”. Segundo reconstituições, Noah terá atravessado um pequeno ribeiro e dormido num barracão, mas terá passado pouco tempo parado.

A notícia do aparecimento foi recebida pelos populares com choro e alegria. “Toda a gente se abraçou, foi uma alegria imensa. Tive um homem corpulento de barba forte a chorar ao meu ombro, tal era a emoção”, recorda Beccy. Noah, depois de abraçado e consolado pelos pais, esteve três dias no Hospital de Castelo Branco em observação. Apesar do esforço, apresentava apenas sinais de desidratação, escoriações e fraqueza. Acabou por sair pelo próprio pé, depois de uma saga de 36 horas, 10 quilómetros e centenas a gritarem o seu nome. W

“COSTUMAM VIR CÁ ÀS COMPRAS À MERCEARIA, SÃO BOA GENTE. O MIÚDO [NOAH] É MUITO ATIVO”

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2021-06-24T07:00:00.0000000Z

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