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A NOVA VIDA DE MELIDES... ...e a que não queremos que mude

Por Ana Taborda

Uma piscina feita para estar em pé, dentro de água, a conversar, passeios de balão com vista para a lagoa, drones que o filmam a andar a cavalo em praias desertas ou uma cabana para dormir. Na terra que encantou famosos como Christian Louboutin, não faltam novidades – e até os sítios de sempre ganharam novas esplanadas e pratos vegetarianos feitos à medida do cliente.

Regressar a Melides é pôr uma moeda de 1 euro em cima do balcão da Tabanca e ter a certeza de que continuamos a pagar um café e a trazer troco – ao contrário do que facilmente acontece na vizinha Comporta. É revisitar a banca de peixe que nos ensinou que os percebes ficam melhores se forem cozidos em água do mar, a mesma de onde vieram as sardinhas que ainda vamos comer ao almoço. É estar na esplanada com mesas compostas e não ver turistas porque é terça-feira de manhã numa aldeia a 10 minutos do mar, mas que tem vida própria. Saber que o Fadista continua a ser o sítio certo para comer amêijoas ou uma massa de sapateira, que o melhor frango assado se compra no talho e que pode não estar ninguém nos CTT, mas há o número de telemóvel da Teresa sempre na porta. É olhar com admiração para os carros mais sujos porque provavelmente são aqueles que conhecem melhor as praias selvagens e os segredos da zona. Estar em Melides é começar uma conversa e a meio aparecer uma pessoa com quem queríamos falar, mas que ainda não tínhamos procurado. Porque em Melides é normal andar por ali. Nesta aldeia a uma hora e um quarto de Lisboa, o rumor de que George Clooney acaba de arrendar uma casa para os seus cozinheiros convive com a saga dos resistentes que há anos recusam ofertas sem preço (1 milhão, 2 milhões, o valor pouco importa) para vender as suas casas. É verdade que o luxo está permanentemente à espreita – há o hotel em obras de Louboutin, a pequena loja da condessa Noemi Cinzano e vários outros projetos em desenvolvimento – mas o que é autêntico teima em não desaparecer.

A pandemia apanhou Lourenço Aragão a trabalhar nos caterings do pai, o organizador de festas Vasco Aragão. Em março de 2020, quando tudo parou, Lourenço e um amigo pegaram neles e começaram a limpar terrenos, a construir estábulos e a tratar de vedações. “Passámos um

DURANTE O CONFINAMENTO, LOURENÇO ARAGÃO MONTOU UM NOVO NEGÓCIO DE PASSEIOS A CAVALO

mês inteiro a trabalhar de manhã à noite”, conta o jovem, de 26 anos, à SÁBADO. Quando já estava tudo pronto para começar os passeios a cavalo – logótipo desenhado e flyers distribuídos pelos negócios da zona –, a Horses by the Beach foi para a rua. “Abrimos no primeiro dia depois da quarentena. Telefonámos a amigos, andámos a bater a várias portas, fizemos publicidade no Instagram e no site, mas não tivemos nenhum cliente. No segundo dia também não apareceu ninguém. Já estávamos a ficar desmotivados, mas no terceiro dia vieram seis pessoas que nos tinham encontrado no Instagram. Fizemos os dois os passeios com medo que alguma coisa corresse mal”, brinca Lourenço, que não tinha propriamente falta de experiência. Começou a montar aos 10 anos, quando o pai – que nunca o fez – decidiu juntar um cavalo aos vários cães da família; uns anos depois, aos 14, competia em provas de 40 a 160 quilómetros. “Chego a

acordar às 6 da manhã para treinar até às 8h e fazer os passeios a seguir.” Começou com seis cavalos, acabou 2020 com nove, agora tem 15 – mais três para competir. Este ano, acrescentou uma novidade aos dois percursos de uma hora e meia que começam e acabam ambos numa praia quase deserta entre a lagoa de Melides e a de Santo André: por mais 50 euros (os passeios custam outros 50), a experiência é filmada e fotografada por um drone.

Não é o primeiro a fazer passeios a cavalo na zona. Antes de a sua empresa existir, Luís Lamas já tinha a Passeios a Cavalo Melides. Conhecem-se bem, claro, ou não fosse Melides uma terra pequena, onde toda a gente sabe que o prolongamento de uma esplanada pode incomodar uma vizinha e que distribuir refeições em confinamento corre o risco de ser alvo de falatório – porque nem todos os restaurantes o fizeram e às vezes as entregas calham à porta da concorrência. Lourenço não pensa assim. “A concorrência obriga a melhorar, a ter ideias”, defende. Do lado dos Lamas, também há novidades: Frederico, que gere o bar da praia Lagoa ó Mar, vai começar a fazer passeios em balões de ar quente ainda este mês. “A ideia é fazer voos exclusivos de uma hora, uma hora e meia, com no máximo quatro pessoas. Achámos que fazia falta uma atividade mais radical (além dos cavalos, os irmãos Lamas alugam caiaques e pranchas de stand-up paddle) e investimos na compra de um balão.” Será Frederico a pilotá-lo. “Por enquanto só fiz voos de teste sozinho, mas provavelmente os meus pais serão os primeiros aventureiros a ir comigo”, adianta à SÁBADO a partir do bar da praia, onde os petiscos – choco frito, camarão na chapa com vinho do Porto e ostras – são servidos na esplanada ou entregues na areia da praia.

Piqueniques gourmet

h Desde que há pandemia, Luís Lamas também tem recebido mais pedidos para terminar os passeios a cavalo

AINDA ESTE MÊS, LUÍS LAMAS VAI PASSAR A FAZER VOOS DE BALÃO EM MELIDES – SERÁ ELE A PILOTAR

com piqueniques e almoços no estábulo. E é aqui que entram em cena dois novos protagonistas da vida na aldeia: António Santos e Marta Fernandes, o casal Twopack Kitchen que o Alentejo já adotou. Ele cozinha – seja um tártaro de atum, um marisco vindo da vizinha Carrasqueira ou um borrego criado ali na zona –, ela trata da agenda, da decoração e do que mais for preciso. “Também descasco batatas”, brinca. Se quiser um piquenique na praia, um jantar exclusivo em

Q casa ou um casamento em que tudo o que é cozinhado sai de uma espécie de fogueira feita no chão, também lhes pode ligar. Já não é o caso, mas António chegou a montar a cavalo. “Quando viemos para cá, em 2018, também fazia passeios para o Luís. Um dia fui a correr à Carrasqueira comprar peixe, fiz o passeio e, quando regressámos, desmontei do cavalo, preparei o grelhador e fiz o almoço.”

António foi o primeiro chef do turismo rural Uva do Monte, junto à praia da Aberta Nova, que, entretanto, fechou. Depois disso, fez muitas outras coisas: estreou a cozinha do restaurante Cavalariça, na Comporta, comandou a do Insólito, em Lisboa, passou seis meses a viajar pelo sudeste asiático com Marta. “Durante a viagem queríamos fazer qualquer coisa para nos divertirmos”, contam. Os menus pop-up que preparam em países como o Nepal, Índia, Sri Lanka e Malásia ajudaram a pagar as despesas e diversificaram a cozinha de António. Como era uma viagem muito back pack, nasceu a TwoPack Kitchen, que se fez empresa em 2020. Juntos fazem mais ou menos o que o cliente quiser, incluindo refeições para retiros de ioga. “Começamos nos 40 euros por pessoa e acho que o mais caro foram 80, mas aí já com lagosta, camarão”, explica António, enquanto fala entusiasmadamente das sapateiras do Sado com 2 ou 3 quilos e do casamento em que um fogo de chão o manteve a assar carne das 7h30 às 11h da noite. A cozinha onde hoje preparam a comida já foi a casa onde viveram, mas “a fase de acordar em cima de um tacho acabou”, dizem enquanto caminhamos para a horta do senhorio, onde as cabras que andam por ali vão fazer companhia nas fotografias. “No inverno passado criámos quatro porcos. É uma vida muito mais divertida e saudável do que a vida na cidade.”

Este ano, tiveram um pedido diferente: fazer a consultoria da ementa do novo bar de praia da Aberta Nova, que acaba de mudar de dono – a concessão é, agora, da Costa Terra, que está a desenvolver um dos maiores projetos na zona (ver caixa), confirma à SÁBADO a vereadora do turismo da Câmara de Grândola, Carina Batista, que adianta mais novidades: além de um segundo abrigo para observação de aves, que acaba de ser inaugurado junto à lagoa de Melides, é também ali que está previsto nascer um novo

glamping: o projeto, submetido pelo Clube de Campismo de Lisboa, já foi entregue na autarquia. “Temos pelo menos uma dezena de projetos em análise na zona, em várias fases.”

Se tudo correr como estava previsto, quando estiver a ler esta revista já poderá ir ao bar da Aberta Nova – ou pelo menos ao apoio entretanto montado no areal, onde há comida e bebida à venda. Em homenagem aos antigos donos, os irmãos Tigre, que sempre a venderam, a salada de polvo continua a estar na ementa, mas há mais: bolo do caco com burrata, presunto serrano e pesto, uma focacia vegetariana, gaspacho, escabeche de sardinha ou salada com ventresca de atum. Chegar até à areia também vai ser mais fácil: “Já concluímos o novo passadiço, que permite a acessibilidade de todas as pessoas, incluindo às que têm mobilidade reduzida”, acrescenta Carina Batista.

As praias selvagens

h Em Melides, há três praias oficiais: a que tem o nome da aldeia, a da Galé e a da Aberta Nova. Se quiser um recanto só para si, há muito mais por descobrir na zona. Alerta: as três praias de que vamos falar a seguir são para ir em modo autossu

O BAR DA ABERTA NOVA PASSOU A SER EXPLORADO PELA COSTA TERRA, MAS MANTEVE A SALADA DE POLVO

ficiente, porque não há apoio de praia por perto. A primeira fica a menos de 7 quilómetros de Melides, na estrada que vai até ao cemitério. Chegar lá é simples: basta seguir em frente até não poder mais; depois, é subir a duna a pé, olhar para a areia e caminhar até ao sítio onde quer estender a toalha – a praia da Vigia já é conhecida na zona, mas o facto de não haver muitos lugares para parar o carro perto da duna acaba por impedir as enchentes. Quer uma ainda menos concorrida? Comece por escrever praia do Pinheirinho no Google Maps: o percurso vai levá-lo a virar à esquerda até chegar a um portão aberto, onde um sinal de trânsito parece impedi-lo de entrar. Não é assim: passe o portão do Spatia Melides (outro projeto de luxo novo na zona; ver caixa) e vire à direita para uma estrada de calçada; pare quando chegar a uma espécie de rotunda e siga em frente – a pé – por mais 700 metros. Se tiver um jipe, há mais opções: pode chegar mais perto do Pinheirinho ou virar à esquerda para uma estrada que tem alguma areia e procurar umas escarpas incrivelmente belas e semelhantes às da Galé – mas sem ninguém por perto. Conselho: não tente chegar lá com um carro comum: não é impossível, mas ali não há rede e já vários locais “salvaram” estrangeiros mais atrevidos que ficaram pelo caminho.

Quando regressar a Melides, o melhor é ir comer umas amêijoas ao Fadista, porque há sítios que, não sendo novos, nunca nos falham. E que mesmo não sendo novos podem ter novidades: aqui, a pandemia trouxe mais 22 lugares de esplanada e reduziu as filas de quem espera por mesa. Bestsellers do restaurante? As cataplanas, um dos vários arrozes (de amêijoas com camarão frito; tamboril; sapateira; ou feijão com espinafres, bacalhau e ovo escalfado), mas também os secretos ou umas pizzas caseiras para os mais pequenos – não estão na ementa, mas Vítor Almeida, o dono, assegura que chegam à sua mesa. A ideia ficou do verão passado, quando foram um sucesso no takeaway.

Antes de ser restaurante, o Fadista era um talho. Vítor e a mulher, Ana Mateus, foram convidados pelo antigo dono a abrir o espaço. E como em Melides tudo parece andar ligado, eles também não estavam longe: Ana trabalhava na cozinha do famoso Tia Rosa (ver caixa), Vítor na discoteca Big Rose, inspirada no mesmo nome e pessoa. “Quando abrimos queríamos chamar ao restaurante Café-bar 25 de abril”, lembra Vítor, que aos 22 anos não percebia grande coisa de política – a ideia era apenas inspirada no dia de inauguração. Foi o antigo dono que os convenceu a pensarem numa alternativa: “Dizia que não íamos ter clientes porque toda a gente ia pensar que éramos comunistas.” E como é que de Revolução se fez fado? “Ele tocava guitarra e tinha um grupo amador de fadistas. O Fadista soou muito melhor.”

Cabana com vista

h Depois da praia e de um jantar à altura, o mais provável é que lhe apeteça descansar. Há várias hipóteses. Cada vez em maior número. “O alojamento local aumentou exponencialmente”, diz Carina Rodrigues. “No concelho há mais de 400 alojamentos legalizados e registados e só em Melides temos mais de 80 em funcionamento.” A Arca – Cabana com Vista, juntou-se em agosto passado a uma cabana na árvore, que já estava no mesmo terreno. São dois dos alojamentos que fazem da vida de Maria Viegas Neves, 42 anos, uma vida muito diferente da que tinha. Estava a trabalhar num emprego que não a realizava particularmente quando encontrou o anúncio de um outro terreno na zona, onde hoje gere o aluguer de uma casa mais tradicional, com piscina. “Pus um post no Facebook a perguntar se alguém me emprestava dinheiro para comprar aquele terreno. Era uma brincadeira, Q

HÁ PRAIAS QUASE DESERTAS A POUCOS MINUTOS A PÉ; MENOS MINUTOS AINDA SE TIVER OU ALUGAR UM JIPE

Q claro, mas uma tia minha, irmã do meu pai, ficou curiosa e respondeu-me por SMS.” Foi essa mesma tia que acabou por comprar o terreno e que ajudou a mudar a vida da sobrinha, que hoje anda de pickup pelo País a tomar conta de vários alojamentos locais. “Ainda tenho um screenshot desse post”, confessa Maria.

A Arca é uma pequena cabana de madeira, com cerca de 13 metros quadrados, mas que parece bem maior graças ao mezanino onde foi posta a cama. É ali que podem dormir dois adultos e se for preciso uma criança – em vez de uma cama tem, na verdade, duas, individuais, com 90 centímetros de largura cada uma, o que dá 1,80 m de colchão. A ideia é que o conforto seja semelhante ao que teria numa casa tradicional: há banho quente, uma casa de banho seca e ecológica (em vez de água usa-se serradura), máquina de café, torradeira, um pequeno frigorífico e Internet. De resto, “queremos interferir o mínimo possível no espaço”, explica Maria, que pede aos hóspedes para não trazerem champô nem gel de banho. “O chuveiro não tem ralo, a água vai diretamente para a terra, por isso não se pode usar qualquer produto e eu mesma compro e deixo na cabana.”

A casa na árvore fica a cerca de 200 metros dali e tem uma vantagem: como está mais elevada, pode usufruir de uma fantástica vista de mar e serra. Preço de ambas: 75 euros por noite. Nenhuma das duas tem piscina, mas há uma mangueira que ajuda a refrescar os dias mais quentes. Se preferir uma opção mais tradicional, a primeira casa, o Monte da Ruxa, aloja seis pessoas e tem uma piscina com água semisalgada. Para saber a localização exata, tem mesmo que reservar: não há placas na estrada e Maria não tenciona colocá-las.

O TURISMO RURAL À ESPERA VAI TER UMA PISCINA COM 1,40 M – A IDEIA É ESTAR DE PÉ, NA ÁGUA, A CONVERSAR

h Melides não é terra de hotéis, de alojamentos com muitos quartos ou mesmo de turismos rurais mais compostos. E é essa oferta que Paulo Andrade e Eva Mendes querem reforçar. O À Espera (já tem nome, mas ainda não tem site) está praticamente pronto e deve abrir já em setembro, um soft opening a fugir das enchentes do verão. Já lá está a típica casa alentejana em tons de azul e branco e as sebes que a pandemia fez chegar mais altas do que estava previsto. Falta a relva e a decoração, muita dela guardada há meses em armazéns e que vai privilegiar os artesãos e produtos locais (senão locais, pelo menos portugueses). Os quartos, duplos, com capacidade para uma cama extra, estão todos virados para uma piscina com 1,40 metros de profundidade. “A ideia é que as pessoas possam estar de pé dentro de água, a conviver”, explica Paulo, que está a pensar ter um veículo elétrico para assegurar a deslocação dos hóspedes até às praias da Aberta Nova e de Melides. O nome À Espera podia estar ligado à pandemia, que tem atrasado a data de inauguração, mas não é o caso: vai chamar-se assim, explica o publicitário, porque o objetivo é que as pessoas desfrutem da casa e do tempo que vão aguardar por cada coisa que quiserem fazer (seja ir à praia, comer uma empada feita por uma vizinha, ou descobrir como funciona o negócio do arroz ou da cortiça, tradicionais da zona). “O objetivo é ter o máximo de atividade cá dentro. Começámos o projeto há três anos, mas como houve muitos casos de infeção em obras, quisemos ir mais devagar. Não temos uma pressa incrível de ter isto pronto, queremos é fazer bem feito e com qualidade.”

A pandemia também mudou os planos de alguns restaurantes famosos da zona. Quando o confinamento os obrigou a fechar A Cascalheira, Carlos e Ana Beja investiram numa Opel Combo e começaram a distribuir refeições sem taxa de entrega. O tupperware não é propriamente uma novidade aqui: no dia em que lá almoçámos, grande parte das mesas levou as sobras à saída e uma cliente habitual ouviu um

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