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Rui Zink fala sobre o medo, a televisão e os prémios literários

O Chega é uma patacoada e Portugal está melhor do que pensa. O escritor, que não gostava do País, diz que a idade o fez valorizar mais o que temos. Mesmo assim critica a ideia de que um prémio literário é tudo o que importa.

Por Vanda Marques (texto) e Vítor Chi (fotos)

Podíamos chamar-lhe visionário, já que os seus últimos livros têm o condão de prever o futuro. Em 2012 já explorava os perigos dos vírus e das pandemias com o romance agora reeditado A Instalação do Medo.E em 2019, editava o Manual do Bom Fascista – antes de o Chega ter um resultado histórico nas eleições –, mas Rui Zink diz que não faz futurologia, apenas está atento ao mundo à sua volta. No ano em que faz 60 anos de vida, 35 de carreira, e quase 40 a lecionar, o escritor vê Portugal com melhores olhos. Mesmo assim ressente-se da lógica da empresa instalada na sociedade e que dá tudo aos vencedores e nada aos perdedores – palavras sábias dos ABBA.

“Eu tive medo pelos meus filhos. É uma decisão estúpida do ponto de vista da segurança emocional ter filhos”

Está a reeditar o seu livro Porquê agora?

A Instalação

do Medo.

Conhece alguma altura mais adequada? Devo dizer que estou espantado que tanta gente suspeite que o vírus tenha sido criado em laboratório em Wuhan e ninguém tenha colocado a hipótese de ter sido o meu agente a fazê-lo para melhorar a minha carreira. Aliás, os meus últimos três livros são assim: o Manual do Bom Fascista, um auxiliar para descobrir o bom fascista que há em si, e o outro O avô tem uma borracha na cabeça, fala sobre o Alzheimer, outro tema do século, e esta Instalação do Medo que podia ser agora.

Sentiu medo nesta pandemia?

Eu tive medo pelos meus filhos. Quem tem filhos vive num medo permanente. É uma decisão estúpida do ponto de vista da segurança emocional ter filhos. Porque são a maior alegria do mundo, mas são também o nosso ponto mais vulnerável.

Em relação a este romance que foi premiado lá fora, disse: “Os filhos da puta dessa gentinha em lugares de poder fecharam os olhos a este livro.” Continua a ser assim?

Sim, continua. Quer dizer não sou a maior vítima da literatura portuguesa. Do alto dos meus 60 anos, fiz coi

sas interessantes, mas o que vejo hoje em dia é que às vezes esquece-se que as coisas têm uma história. Este é o país dos prémios literários. No meu caso, imagino sempre o júri a dizer: “Então e o livro do Rui?” E alguém responde: “O gajo tem um Lamborghini, não precisa.” Sem ofensa aos júris, mas uma pessoa que aceite ser parte de um júri literário em Portugal já de si está a mostrar que não deve ser grande pessoa.

Porquê?

Em alguns júris de prémios fica-se com 30 livros para ler em 15 dias... Isso é um convite para a incompetência. E antes disso foi um assistente editorial que fez a triagem e quase o imagino a olhar para aquele manuscrito, feito com todo o amor e trabalho, e a dizer: “hump” [encolhe os ombros]. Muitas vezes temos de ler e voltar a ler um livro. Depois inventam-se desculpas de que basta ler duas ou três páginas. Não basta. Uma vez tive uma boa crítica do meu livro O Suplente, um livro muito sério sobre a morte de um filho, a pior coisa que pode acontecer. Só que começa com uma cena humorada, sobre um jogo de futebol. Mas pelo meio são 300 páginas puras e duras sobre uma tragédia. Ora as boas críticas eram: “Mais um livro do Rui, muito divertido, cheio de humor sobre futebol.” Não leram tudo...

“O dinheiro dos meus impostos vai para pagar que os preguiçosos tenham direito a beber um copo de vinho”

Neste romance escreve que a “sociedade está paulatinamente a ser substituía pela cultura da empresa”. O que quer dizer?

A ideia de que estamos cá para sermos funcionais, úteis, quando deixarmos de funcionar somos descartáveis. Um país por enquanto não pode despedir os preguiçosos, os menos competentes e os idosos. Ao contrário do culto da empresa, que acha normal despedir os colaboradores, o que para mim é assustador e desumanizador. O dinheiro dos meus impostos vai para pagar que os preguiçosos tenham direito a beber um copo de vinho e um sítio para dormir, vai para que os incompetentes tenham emprego, nem que seja Q

Q na câmara como presidentes ou jardineiros, vai para pessoas de que eu não gosto tenham condições. Até para escritores horríveis que vendem mais do que eu e que deviam ser condenados e são uma data deles.

Quem?

Punha lá o Gonçalo M. Tavares, o João Tordo, o Valter Hugo Mãe, o Afonso Reis Cabral. Era tudo preso, porque têm talento, vendem mais que eu e, se calhar, escrevem melhor. E a vida corre-lhes muito melhor do que a mim e isso é uma injustiça. Estou na idade em que posso dizer isto.

Mas sempre disse?

Sim, mas agora digo-o com propriedade. Antigamente eu é que era o rebelde, o menino-prodígio. Agora há uma série de sacanas que têm mais cabelo que eu e são mais bonitos.

Como lida com isso?

Mal. Com inveja, ressentimento, dor de corno, mas a brincar a brincar se diz as verdades. O escritor que eu sou, e os escritores de que eu gosto, não escrevem com as suas qualidades – isso são os idiotas –, eles escrevem com os seus defeitos. A grande arte da escrita é transformar um defeito num superpoder. Por exemplo, há 40 anos que faço atividade pública e tenho um defeito: sou sopinha de massa. Mas o mundo está mais para os vencedores. As pessoas estão cada vez mais enlouquecidas, por causa da pandemia, mas também por esta cultura em que vivemos – a cultura do vencedor.

Porquê?

É essa cultura que faz com que o escritor mais vendido se ache também o melhor e que faz com que um palerma decida fazer um livro de História e se ache o maior historiador. As pessoas criticam a marquise do Cristiano e não criticam a marquise do José Gomes Ferreira. Cria-se a ideia “ao vencedor tudo, ao derrotado nada”, sábias palavras dos ABBA. Esta sociedade que é a mais próspera de sempre arrisca-se a ser a que mais faz as pessoas sentirem que falharam. As pessoas estão a divorciar-se porque não têm paciência.

Casamento é paciência?

O segredo de um bom casamento é: ponto um – muita paciência; ponto dois – a outra parte não saber o que nós fazemos de vez em quando e ponto três – nós também fingirmos que não vemos algumas coisas. Porque o amor eterno, virginal, é bom quando Romeu e Julieta têm 15 anos. Nós hoje duramos mais. Não há amor eterno, o que há é pessoas cujas vidas duram menos que o amor.

Também fez futurologia com o Manual do Bom Fascista. Imaginava um resultado tão bom como o do Chega este ano?

Em Portugal houve durante vários anos um matraquear do estar à espera dos bárbaros. Eles estão à porta, e nunca mais chegam. Só que confundimos desejo e medo. Sabe, odeio três coisas em Portugal: odeio os tipos que se apropriaram do símbolo do círculo com os dedos para expressar ótimo, dos que criaram um partido chamado Livre e os tipos que criaram um partido chamado Chega. Não posso dizer “a que horas chega?”; ou para um táxi: “está livre?” sem fazer propaganda política.

Como vê o Chega de André Ventura, como o define?

É uma coisa cómica, uma patacoada. É admirável porque é um partido que tem um deputado, e desde há dois anos que se ouve: “Se as eleições fossem hoje…” Pensava que os jornais falavam da realidade, agora falam da potência. É evidente que o problema não é aquele partido em concreto. Há duas coisas em Portugal: a crise e a perceção da crise. Não somos o país mais corrupto da Europa, mas acontece que temos a perceção de que somos. Eu gosto de Portugal. É uma coisa da idade. Em jovem não gostava, queria era ir para o estrangeiro. Depois viaja-se e vemos que é um dos países com melhor qualidade de vida democrática do mundo.

Gostava de voltar a fazer um programa como Noite da Má Língua?

Sim. Bem, eu gosto sempre de coisas remuneradas, mas gostava porque ficámos amigos tipo tropa. Mas a ideia de uma pessoa dizer o que pensa é tão pouco 2021. É o lado mau do politicamente correto, que é: agora também posso carregar no botão e destruir alguém.

Gorou as suas expectativas, era um programa tão fulgurante?

Sim. Mas já fazia coisas públicas com algum impacto, nos anos 80 [Felizes da Fé]. Escolhi a arte do pobre – só preciso da caneta e do papel. E a vida de escritor permite longevidade. Se eu morresse amanhã tenho uma obra. Fiz um chichi ao longo de quatro décadas. Só que neste momento que ia gozar a obra, sinto que de um dia para o outro esquecem-se. A cultura do cancelamento americana sempre existiu, mas era de direita, agora é de esquerda. A esquerda sempre gostou de mim quando era preciso dar uma ajuda. Mas é a primeira a zangar-se, quando não dou. Qualquer artista em Portugal conhece a história da Raposa e do Corvo. No momento em que damos o queijo, a raposa abala. A história da minha vida são one-night stands. Gente que me dá uma cantada e diz: “Rui, tens uns olhos lindos, adorava tocar no teu corpo.” Depois vamos para a cama e eu deixo fazer o que eles querem e no dia seguinte nem um beijinho. Esta é a minha história e a de qualquer artista em Portugal. W

Sumário

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