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A dispensa de pena e o direito penal do amigo

Constituirá a corrupção, nos dias de hoje, em Portugal, ameaça menos séria e plausível que o tráfico de droga ou o terrorismo?

Procurador-geral adjunto jubilado e ex-diretor do DIAP de Coimbra Euclides Dâmaso

Perante o clamor acerca da insuficiência das medidas de direito premial previstas para a corrupção, desde logo por comparação com as existentes para os crimes de droga e de terrorismo, a primeira versão da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção apresentou uma tímida proposta de melhoramento: para outorga da dispensa de pena ao coarguido que colaborasse com a Justiça na descoberta da verdade deixava de se exigir que a sua denúncia ocorresse nos 30 dias após a prática do ato, anuindo-se à ideia de que dificilmente ocorreria arrependimento “em plena lua de mel do consórcio delituoso”. Mas, incompreensivelmente, continuava a exigir-se que tal colaboração consistisse em denúncia e que esta ocorresse antes da instauração do procedimento criminal.

De imediato despontaram reações, propondo que a dispensa de pena se aplicasse não só a quem tivesse denunciado o crime antes da instauração do procedimento criminal como também a quem, até ao encerramento do inquérito, contribuísse decisiva e firmemente para a descoberta da verdade, desde que restituísse voluntariamente a vantagem recebida ou o seu valor. Mais se propunha que a concessão desse benefício fosse preferencialmente imperativa, como sucedera até à Lei 30/2015, e não apenas facultativa, e que ocorresse nos termos do artigo 280º do CPP, na fase de inquérito, sem ida a julgamento.

Alegava-se em favor dessa solução que o potencial de dissuasão, de verdadeira alavanca de desmantelamento de complots estabelecidos entre comparticipantes de atos corruptivos, o efeito preventivo desejado, só se alcançará se no momento da prática criminosa pairar o espectro de que algum dos comparticipantes possa vir a ser aliciado para colaborar com a Justiça, pondo termo ao pacto corruptivo em busca do almejado prémio da dispensa de pena. Invocava-se como fundamento a Convenção de Mérida contra a Corrupção que, no seu artigo 37º, nºs 1 e 3, alenta os Estados-Partes a concederem “immunity from prosecution” a quem preste colaboração substancial à Justiça para a repressão desse tipo de crimes.

A versão final da ENCC, aprovada em Conselho de Ministros e plasmada na Proposta de Lei 90/XIV, vem agora apresentar um regime de dispensa de pena que parece ostensivamente complexo e rebuscado. Começa por assentar na destrinça entre corrupção própria (para ato ou omissão contrários aos deveres do cargo) e imprópria (para ato ou omissão não contrários aos deveres do cargo), concedendo maior abertura, isto é, menor exigência de pressupostos de aplicação, à segunda e entra depois numa espiral condicionadora. Assim:

1 Enquanto na corrupção própria exige que o ato ou omissão contrário aos deveres do cargo não tenha sido ainda praticado, na corrupção imprópria admite a dispensa de pena mesmo que o ato ou omissão não contrário aos deveres do cargo tenha sido praticado ou tenha havido recebimento ou oferta indevida de vantagem.

2 Dispensa essa que será obrigatória se a denúncia do crime em todos os seus contornos ocorrer antes da instauração do procedimento criminal ou facultativa se ocorrer posteriormente, durante as fases de inquérito ou instrução, desde que neste caso se verifiquem os pressupostos das alíneas do nº 1 do artigo 74º do CP.

3 Só perante a verificação desses pressupostos do artigo 74º é que a dispensa de pena pode ser outorgada nos termos do artigo 280º do CPP, com imediato arquivamento do processo; caso contrário será em julgamento que ocorrerá.

Ou seja: está muito longe de ser alcançado, face ao exposto, o target almejado de poder conquistar-se um agente de

corrupção própria para colaborar com a Justiça durante o desenrolar do inquérito, a troco de dispensa de pena concedida nessa fase processual, ao abrigo do artigo 280º do Código de Processo Penal.

Tenho por duvidoso o fundamento da complexa solução da Proposta de Lei. Desde logo porque parece privilegiar a perspetiva de que essa dispensa é uma genuína medida de agraciamento em vez de considerar que é afinal e sobretudo um expediente tático com vista ao potenciamento dos objetivos de prevenção e repressão da corrupção, uma técnica especial de investigação. Nesta acertada interpretação do instituto haveria de concluir-se que mais importante seria intentar esse potenciamento nos casos de corrupção própria, naturalmente os de maior desvalor ético-jurídico.

Seria nos casos de ato ou omissão contrários aos deveres do cargo que mais se deveria afirmar o poder dissuasório da medida e em que menos deveriam afunilar-se os pressupostos da sua aplicação. Para que não haja dúvidas: é tão descabido o regime que vem proposto como seria permitir o uso de técnicas especiais de investigação em casos de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e não o permitir em casos de tráfico internacional organizado.

Mantenho por isso o entendimento de que a dispensa de pena deve ser concedida não só a quem tenha denunciado o crime antes da instauração do procedimento criminal como também a quem, até ao encerramento do inquérito, tenha contribuído decisiva e firmemente para a descoberta da verdade, desde que tenha restituído voluntariamente a vantagem recebida ou o seu valor e quer se trate de corrupção ativa ou passiva, própria ou imprópria. E receio que, na bizantina formulação adotada, o regime da Proposta de Lei só venha a servir como fator de ensarilhamento e de chicana processual.

Contudo, como é consabido que para o combate ao tráfico de droga e ao terrorismo se adotou, há já muito tempo, sem que alguém pestanejasse, solução bem mais robusta, coincidente com a que aqui propugno, receio que o prurido tão seletivamente evidenciado no domínio da corrupção venha a ser entendido como mais um flagrante exemplo do “Direito Penal do Amigo”, conceito que, como anuncia Luigi Foffani, desponta há já uns anos a partir de Itália e de Espanha, soprado por uma onda de escândalos económico-financeiros. Por trás da fachada garantística e de civilidade jurídica, o “Direito Penal do Amigo” ou de “tolerância máxima” é afinal instrumento de um poder que luta contra a igualdade: forte com os fracos, suave no confronto com os cavalheiros de turno no mando.

Na elaboração doutrinária de Giuseppe Losappio, enquanto o “Direito Penal do Inimigo” (na formulação de G. Jakobs) introduz no sistema o princípio da tirania, o “Direito Penal do Amigo”, que é o seu reverso, introduz a tirania sobre os princípios (começando pelo da igualdade). Enquanto o primeiro representa uma caricatura da democracia, o segundo representa uma caricatura do garantismo. Mas ambos deslegitimam o Direito Penal, porque se o primeiro alimenta um “antigarantismo populista” o segundo recobre o garantismo, reforçando-o com o manto odioso do privilégio: “Para os amigos tudo, para os delinquentes a lei, para os inimigos nada.”

É bom que tudo isto esteja presente e seja tido em conta no momento de se aprovar a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. E mais o seguinte: constituirá a corrupção, nos dias de hoje, em Portugal, ameaça menos séria e plausível que o tráfico de droga ou o terrorismo?

A Semana

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2021-06-24T07:00:00.0000000Z

2021-06-24T07:00:00.0000000Z

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