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Pandemia lançou o caos nos Centros de Saúde

Cerca de 25% do tempo dos médicos de família está agora dedicado à pandemia. Resultado: há doentes crónicos descompensados, rastreios atrasados e cancros mais avançados e com menor perspetiva de cura.

Por Lucília Galha

No último ano, Mónica Fonseca esteve pelo menos 16 semanas a trabalhar nas chamadas Áreas Dedicadas aos Doentes Respiratórios (ADR) – espaços onde se avaliam suspeitas de Covid-19. O que significa que, durante esses quatro meses, houve várias consultas que não fez, doentes crónicos que não vigiou e doenças que ficaram por detetar. “Sempre que sai um profissional de saúde, os outros têm de o substituir, mas a resposta não é a mesma porque cada um tem a sua lista de utentes para seguir”, diz a médica especialista em Medicina Geral e Familiar. Atualmente, por semana, vê cerca de 80 doentes, responde a uma média de 50 emails e faz pelo menos 25 chamadas para pessoas em vigilância – trabalho que muitas vezes sobra para a noite, já em casa.

Na Unidade de Saúde Familiar Sofia Abecassis, em Lisboa, há 5 médicos, 4 enfermeiros e 2 administrativos. Mas, neste momento, só funciona diariamente com 2 enfermeiros (há dois alocados à vacinação) e pelo menos um médico também está sempre fora.

“Isto está a asfixiar os Cuidados de Saúde Primários. Nós somos a porta de entrada do doente e quando essa porta está entreaberta fica muita gente sem acesso a cuidados de saúde”, alerta a também dirigente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos.

Na sexta-feira, 18, quando falou com a SÁBADO, só o Agrupamento de Centros de Saúde a que pertence (ACES Lisboa Central) já tinha mais de 1.100 pessoas em vigilância. “Não temos sequer condições para retomar o que fazíamos, e com o aumento de casos é possível que a nossa atividade fique mais comprometida”, admite.

Desde o início da pandemia que os médicos de família têm acumulado várias atividades extras ao seu trabalho regular. Como o atendimento nos chamados ADR, o seguimento telefónico dos casos suspeitos ou positivos e, mais recentemente, a vacinação – que hoje é a tarefa que ocupa mais tempo e recursos. Segundo as autoridades de saúde, são 600 dedicados diariamente a esta tarefa; já o Sindicato Independente dos Médicos (SIM), diz que o número ascende aos 800, num universo de 2.780. “Num horário de 40 horas, 8 são dedicadas por semana à vacinação. Juntando depois com os telefonemas e as idas para as áreas respiratórias, estamos a falar de 20 a 25% do nosso tempo, nalguns casos mais, dedicado a esta tarefa”, aponta Nuno Jacinto, presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar.

Mais cancros, mais avançados

O problema é o que fica para trás: os tempos de espera aumentaram e a capacidade de dar resposta diminuiu. “Há dias, tinha à porta do meu centro de saúde umas 30 pessoas”, conta Jorge Roque da Cunha, médico e presidente do SIM. Também há doentes crónicos que não são vigiados com a frequência que precisam, como os diabéticos e os hipertensos, admite o também médico de família,

Nuno Jacinto. “O que acontece é que a probabilidade de estes doentes descompensarem é maior. Se vão todos descompensar, felizmente não. Se há mais que vão estar descontrolados e com maior risco de complicações, claro que sim”, diz à SÁBADO.

Outro aspeto posto em causa são os rastreios. De acordo com os dados do Portal da Transparência do SNS, em 2020 mais de 169 mil mulheres não fizeram rastreio ao cancro da mama, 140 mil não vigiaram o do cancro do colo do útero e mais de 125 mil ficaram sem despistar o cancro do cólon e reto. “Os rastreios estão a ser feitos, mas não ao ritmo que fazíamos antes, porque estamos menos tempo nas unidades”, diz Nuno Jacinto.

“Isto significa que há um conjunto de doenças e de doentes que deviam ter uma vigilância regular e periódica e não têm. Por isso, essas doenças e doentes vão piorar”, diz Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos. O também médico garante que nos hospitais isso já se começou a sentir: “Estão a chegar-nos doentes com cancros do estômago, intestino ou colo do útero mais avançados e em maior número do que tínhamos antes. Porque não se fazendo o rastreio, a doença continua a progredir”, alerta.

Para conseguir dar resposta a todas as frentes, as unidades de saúde tiveram de se adaptar. Na região de Lisboa e Vale do Tejo, algumas têm fechado portas mais cedo (às vezes duas a quatro horas antes) ou deixado de fazer atendimento complementar ao fim de semana. “Soubemos de um centro em Campo de Ourique que só tem três médicas. Se uma for destacada para o ADR e outra para a vacinação, só fica lá uma. A USF mantém-se aberta, essa médica vê os seus doentes e depois tem de tratar das urgências, mas não consegue fazer tudo”, conta Alexandre Valentim Lourenço.

“A vacinação é prioritária e nós sabemos que sim e continuamos dispostos a colaborar. O que não se pode fazer é resolver um problema criando outro”, diz Nuno Jacinto. Há pelo menos três meses que o SIM tem apelado ao Ministério da Saúde para resolver este problema, até agora sem efeito. A Ordem dos Médicos considera que só com “a intervenção do Estado”, libertando os médicos de família destas atividades que não existiam pré-pandemia, se poderá reduzir o impacto negativo nos cuidados de saúde primários.

À SÁBADO, o Ministério da Saúde sublinha que neste momento a vacinação contra a Covid-19 é uma prioridade para o país e que, mesmo assim, se tem assistido “a uma recuperação significativa da atividade assistencial”. W

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2021-06-24T07:00:00.0000000Z

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