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O cheque e o pântano dos fundos europeus

Diretor Eduardo Dâmaso

Apoucos dias de Portugal começar a receber dinheiro da famosa bazuca europeia, os velhos fantasmas regressam e são simbolizados em duas intervenções recentes de António Costa e Elisa Ferreira, a comissária europeia com a pasta da Coesão e Reformas. Entrevistada pelo Jornal de Negócios, Elisa Ferreira disse uma verdade inconveniente: “É penoso ver que ainda estamos entre os países atrasados.” António Costa, pelo seu lado, respondeu com uma verdade conveniente: “Temos um historial de que nos devemos orgulhar e não ser motivo de flagelação relativamente à utilização dos fundos.” O problema é que, pelo meio desse historial de orgulho, ficaram os anos iniciais de receção de fundos comunitários, pelo menos entre 1986 e 1988, que foram um desastre total. E que, ainda hoje, ecoam na perceção pública sobre os fundos europeus, devido aos desvios milionários que são conhecidos. A perceção não ajuda ao discurso de autossatisfação de Costa e, na verdade, no plano material, Elisa Ferreira também tem razão. É verdade que Portugal seria outro País sem os fundos, muito mais atrasado e pobre, mas também é verdade que, 35 anos depois da entrada na CEE, há muito que deveríamos ter deixado de viver de mão estendida em relação à União Europeia. “Portugal (…) deveria deixar de ser um país da coesão porque, neste momento, é penoso ver que Portugal, com estes anos todos de apoio, ainda está entre os países mais atrasados.” São estas as palavras de Elisa Ferreira, certeiras e carregadas de razão.

No essencial, ao contrário do que diz António Costa, Portugal não fez uma boa gestão dos fundos comunitários nos primeiros anos. Na área da formação profissional, mas não só, a receção de dinheiro da Europa começou com um lodaçal gigantesco de fraudes, sobretudo no Fundo Social Europeu, entre 1986 e 1988. Já o escrevi muitas vezes e não me parece que esteja longe da realidade. Nem que seja demais repeti-lo. Com o dinheiro da Europa, Portugal construiu autoestradas, pontes, hospitais e modernizou as principais infraestruturas do País; mas não qualificou os portugueses nem eliminou, ou sequer atenuou, as desigualdades entre o Litoral e o Interior. Os muitos milhões desses primeiros anos evaporaram-se e criaram fortunas privadas ou engordaram outras que já existiam. Tudo convergiu para cavar um dos mais fundos alicerces do pântano português. O escândalo foi abafado na justiça para que Portugal não fosse obrigado a devolver o dinheiro a Bruxelas e, para isso, criaram-se vários instrumentos. O mais inteligente e eficaz foi o que travou a investigação criminal ao nível da Polícia Judiciária e do Ministério Público. Primeiro centralizou-se a competência para investigar os inquéritos numa estrutura única, que retirou o poder aos outros departamentos da PJ e nunca passou de uma espécie de “gabinete de estudos”; depois criou-se o “problema jurídico” de saber em que momento se consumava o crime de fraude na obtenção de subsídio comunitário, que levou quase duas décadas a clarificar nos tribunais; por fim, deu-se um período de prescrição muito baixo – cinco anos – aos processos de fraudes aos cofres comunitários. Um golpe perfeito para evitar problemas políticos em Bruxelas e, sobretudo, que nos obrigasse a devolver metade dos fundos, mas que criou um dos maiores estrangulamentos ao desenvolvimento do País e, ao mesmo tempo, uma verdadeira sementeira de corrupção e tráfico de influências. O nosso historial, por muito que custe a António Costa, também tem este lado negro.

Passos Coelho, reformas “em confronto”

Pedro Passos Coelho apresentou um livro sobre saúde e deixou algumas

ideias sobre o setor e a necessidade de reformas em geral. O antigo primeiro-ministro foi frontal sobre a saúde e a sua ideia de reformas, na sessão em que apresentou o livro Um Manual para a Mudança na Saúde, de António Alvim, militante do PSD e membro do Conselho Estratégico do partido. Goste-se ou não, assumiu as suas ideias para o Serviço Nacional de Saúde e que há reformas que só se fazem “em confronto” político. Passos Coelho tem razão. Na verdade, a ideia de consensualização das reformas entre vários partidos, inclusive de famílias ideológicas diferentes, não está na tradição portuguesa. Essa ideia de germanização da política nacional, que Rui Rio tentou ensaiar, propondo pactos ao PS e que este só aproveitou no que lhe deu jeito, é pouco realista. A vida política nacional está cada vez mais polarizada e arrumada, à esquerda e à direita, em função das duas grandes categorias ideológicas produzidas pelo século XX. Com a diferença de que o PS lidera calmamente à sua esquerda, e o PSD tem cada vez mais dificuldades em liderar à sua direita. Passos percebe que esse é o ar do tempo e não está para negócios centristas, tipo Bloco Central. A ideia de que há reformas que só se fazem “em confronto” é um desafio à sua direita para arrumar as ideias, acertar um programa de governo exequível e com reformas que não devem esperar por consensos mais alargados do que a indispensável soma de votos para que avancem. Como digo, podemos não concordar, mas é uma linguagem de verdade e de rutura, valores de que andamos muito necessitados para sair deste ambiente pantanoso, em que há uma geringonça tática, em muitos aspetos alargada ao Presidente da República, mas que não faz o País avançar em direção a lugar nenhum.

Os donos da água em Odemira

Uma organização associativa razoavelmente opaca, onde o poder é detido há muitos anos pelos interesses de sempre, os dos maiores proprietários de terras abrangidas pelo canal de rega do rio Mira, é a dona do mais precioso bem público do concelho de Odemira. A Associação de Beneficiários do Mira tem vindo a orientar a sua ação na defesa dos interesses dos produtores de frutos vermelhos, a quem a esmagadora maioria dos associados com maiores propriedades arrenda os seus terrenos, e arroga-se agora o poder de não distribuir água armazenada na barragem de Santa Clara a centenas de pequenos e médios agricultores, com o argumento de que o armazenamento está num nível crítico. Esta decisão inaceitável vem agravar ainda mais a estratificação social e económica do concelho. Afeta pequenos agricultores, a maior parte deles reformados e com magras pensões, como bem alertou a organização Juntos pelo Sudoeste, que tentam compensar a escassez de rendimentos com pequenas hortas de subsistência, ao passo que as empresas com explorações agrícolas no interior do perímetro de rega do Mira pagam um valor esmagadoramente mais barato.

Esta é uma situação quase feudal, que afasta do poder e do escrutínio públicos um recurso vital para as pessoas, para as suas formas de sustento, para a fauna e flora. As câmaras de Odemira e Aljezur têm feito veementes protestos, mas arriscam-se a ficar sozinhos, a gritar no meio do deserto. A insensibilidade e paralisia do Governo, em particular do inefável ministro do Ambiente, são totais. Uma vergonha, que pouco comove as pessoas e organizações que tanto se indignaram e mobilizaram na defesa dos interesses de umas poucas dezenas de proprietários de uma segunda habitação no Zmar, um conhecido parque de campismo e caravanismo.

Do Diretor

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2021-06-24T07:00:00.0000000Z

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http://quiosque.medialivre.pt/article/281569473695055

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