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O que os dedos não voltam a agarrar

Eis o que é a infância, um baloiço. E corrijo, antes que sentem o belo posterior no balancé: a infância é um baloiço entre a alegria e a dor. Lembrem-se, era o ano de 1962 e o mundo enfiava os acabrunhados dedos no crânio com a crise dos mísseis de Cuba. Pairava sobre as cabeças a horrenda espada da guerra atómica: as úlceras dos que eram uma pilha de nervos pediam o bálsamo, ai, meu Deus, de um copo de leite. Ora, na Luanda de 1962, já a morar na Vila Alice, na rua paralela à rua onde morou Luandino Vieira, eu tinha só 8 anos, um estômago inabalável e uma cabeça evanescente, de onde brotavam nuvens e sonhos. A minha alegria e a minha dor não eram ainda a Guerra Fria nem o meu preclaro espírito tinha prenúncios do espectro de Putin, hidra de sete cabeças que agora nos assombra. A minha alegria era o dêdêtê – sim, o DDT, o pesticida conhecido por diclorodifeniltricloroetano – e a minha dor era a bitacaia, a pulga “Tunga Penetrans”, insecto sifonáptero da família dos tungídeos. Começo pela dor. Todos queríamos ter pés de ouro, pés que rivalizassem com o perfeito e rematado pé mulato de Eusébio. Jogávamos à bola em qualquer baldio, atrás da Farmácia Luanda, ou no minúsculo terreno em frente à casa da tão bela Ana Maria, entalado entre a casa do lixivieiro e a casa onde desaguaria uma família do Porto com quem se armou, num fim de tarde de domingo, um monumental arraial de pancadaria que juntou a rua, o beco, e as pistolas dos dois polícias moradores, o sub-chefe pai de outra angélica Ana Maria que, com um gemido de pranto, o bairro viu casar-se aos 15 anos, e o sub-chefe pai da loura Bia com quem, em anos posteriores à bitacaia, descobri a inocente doçura de dançar “slows”, mesmo o “I’ve Got Dreams to Remember”.

E eu falo, enfim, da bitacaia. Era uma pulga que se enfiava na pele macia do pé, no calcanhar ou junto a uma unha. Sempre e só a insidiosa fêmea. Ia e punha um saco de ovos. O prurido irritante que aquilo dava. Se não a combatêssemos, acontecia o que acontecerá se não combatermos Putin, a necrose. Nesse remoto caldo colonial, eram as mães negras, bessanganas, que nos salvavam o pé infectado. Com um golpe de navalha abriam a pele, tiravam a bitacaia, ou matacanha, com o cuidado de não rebentar o saco de cem ovos, e depois, puxando o cigarro, que fumavam com a ponta acesa dentro da boca, deitavam cinza quente na ferida aberta.

No dia seguinte, ais e uis esquecidos na poeira das ruas, já corríamos atrás do carro do fumo, o carro do DDT, que vinha fumigar o bairro para matar essas pulgas e mais artrópodes, a prodigiosa mosquitada, o mosquedo, a mirífica e irreprimível vida dos trópicos.

Hoje, o DDT está proibido. Imputam-se ao pesticida mil tormentos e danosas consequências. Nesse tempo era um fumo salvador. Era a TIFA, uma carrinha com um depósito, que Terrence Malick, realizador americano, mostrou no filme “The Tree of Life”. Quando a víamos, nas manhãs ou tardes ociosas dos trópicos, gritávamos “carro do fumo! carro do fumo!”, e cheirávamos fundo e forte, como, exultante, o coronel do “Apocalypse Now” adorava cheirar napalm pela manhã. Despíamos as camisas e mergulhávamos na nuvem daquele fumo tóxico, a encharcar-nos a cabeça e o peito, numa alegria cem por cento desinfectada, as mães aos gritos por nos verem desaparecer na cerrada vaga branca, nuvem alada de anjos de cheiro.

Entre a pequenina dor e a imensa alegria, a sub-reptícia bitacaia e a alva bola de neve do dêdêtê, forjou-se a minha infância. Como todas as infâncias: fumo que os dedos não voltam a agarrar.

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SÉRIE ESCRITORAS ESQUECIDAS

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2022-10-07T07:00:00.0000000Z

2022-10-07T07:00:00.0000000Z

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