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Musk e o Twitter: “Quem pia aqui sou eu”

JOSÉ SÁ REIS Professor na Fac. de Direito da Universidade do Porto, Advogado jose.sa.reis@gmail.com

Nas últimas semanas escapar às notícias sobre a oferta de Elon Musk aos acionistas do Twitter foi provavelmente uma tarefa quase tão difícil como atravessar a quadra natalícia sem nos cruzarmos com a cantiga da Mariah Carey ou com a “Música no Coração”. E como é habitual nestas situações que envolvem os super-ricos e a apropriação do que entendemos ser um “bem público”, os comentários ao possível negócio (entretanto temporariamente suspenso) têm sido muito mais emocionais do que racionais.

Confesso que não tenho grande paciência para seguir as polémicas em que Musk se envolve com alguma regularidade. Mas sei que tem investido e contribuído para o desenvolvimento tecnológico em áreas muito diversificadas, sendo uma delas os automóveis elétricos. E tenho alguma dificuldade em antipatizar seriamente com quem há vários anos contribui ativamente para um mundo mais limpo e menos dependente do petróleo, ainda que pelo caminho se tenha tornado (aparentemente) o homem mais rico do mundo e de ter um longo historial de comentários e opiniões infelizes, sobretudo em redes sociais.

Musk começou por justificar a oferta com o facto de se considerar um “absolutista da liberdade de expressão”, e querer preservar esse espaço das ingerências dos reguladores e das imposições do politicamente correto, que cada vez mais limitam os conteúdos no Facebook. Ora bem, se é certo que cada vez mais os utilizadores de redes sociais se insurgem contra o excesso de zelo dos moderadores, hoje também é claro que a importância que aquelas assumem na divulgação da informação as tornam um instrumento de manipulação da opinião pública especialmente apetecível, além de um veículo privilegiado para espalhar notícias falsas, discurso de ódio, insultos e calúnias sem consequências de maior. E a questão tem hoje uma nova dimensão, com o acordo relativo à aprovação do Regulamento sobre Serviços Digitais: para poder operar no espaço europeu, a absolutização da liberdade de expressão de que Musk se afirma como o grande Paladino terá de ser temperada pelo regulador comunitário.

O que verdadeiramente me parece poder ser uma ameaça para os utilizadores do Twitter (e, indiretamente, para todos) é o facto de o controlo de uma empresa com esta dimensão deixar de estar repartido por um número considerável de acionistas de referência (nenhum dos quais ultrapassava significativamente, até há dias, os 10% do capital) para se concentrar em Musk. Já não estamos a falar de uma fabricante de veículos ou de tecnologias espaciais, mas de um serviço que diariamente transmite informação e forma a opinião dos seus mais de 200 milhões de utilizadores. Um serviço que, sen

Não tenho quaisquer razões para acreditar que Musk vai tornar o Twitter pior ou mais desinformado. Mas desconfio sempre de demasiado poder em tão poucas mãos.

Os utilizadores poderão a prazo estar a navegar num ambiente de informação e opinião controlado quase unipessoalmente. É isso que me assusta.

do “gratuito”, é encarado por muitos utilizadores como quase-público, o que os torna mais permeáveis a todo o aproveitamento e manipulação comercial, eleitoral, religiosa ou ideológica que existe invariavelmente nestes espaços. Mas que na verdade é rigorosamente privado, muitíssimo valioso e pago a peso de ouro por estes utilizadores com a sua atenção à publicidade que lhes é dirigida de modo cada vez mais personalizado e com os dados que eles consentem em transmitir e em deixar utilizar. E como quantos mais utilizadores, mais publicidade, não há grandes limites para as estratégias de angariação de novos seguidores.

Do que se trata aqui não é de um risco para o mercado, como quando o Facebook comprou o Whatsapp: nenhum concorrente vai ser absorvido por outro, e o setor não vai ficar mais concentrado. É antes um perigo para os próprios utilizadores, que sem se aperceberem bem disso (porque não lerão, como ninguém lê, os avisos sobre as alterações dos termos de serviço) poderão a prazo estar a navegar num ambiente de informação e opinião controlado quase unipessoalmente. É isso que me assusta.

Volto a dizer: não tenho, de momento, quaisquer razões para acreditar que Musk vai tornar o Twitter pior ou mais desinformado. Mas desconfio sempre de demasiado poder em tão poucas mãos.

Coluna quinzenal à terça-feira

OPINIÃO

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2022-05-17T07:00:00.0000000Z

2022-05-17T07:00:00.0000000Z

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